Uma face das mais trágicas e que passa praticamente despercebida pelos teóricos entusiastas da globalização "indolor" é o drama dos refugiados que perambulam pelo planeta. Sem lar, pátria ou agregado material, milhões de pessoas são expulsas de sua terra natal e são obrigadas a imigrarem para outros locais, países ou continentes. Seja por conflitos bélicos, contingências políticas ou catástrofes naturais, o número de refugiados não pára de crescer. Segundo relatório das Nações Unidas divulgado na semana passada pelo Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas Para Refugiados), "em 2007, o número de refugiados totalizou 37,4 milhões, dos quais 11,4 milhões estariam fora de seus países e 26 milhões seriam refugiados internos, [...] com estatísticas de mais de 150 países" (BBC BRASIL, 2008).
Esse enorme contingente populacional de transeuntes apátridas deixa explícita a gravidade da situação. Também é possível tecer considerações sobre o fim das guerras clausewitzianas, ou seja, os conflitos bélicos clássicos entre povos ou países (conceito de Estado-Nação) com exércitos e munição estatais. As guerras travadas no século XXI serão assimétricas, disformes e desprovidos de uma arquitetura ideológica definida. Surgem então as milícias mercenárias e fortemente armadas se transformando em exércitos privados com imunidade diplomática oriundas de empresas "globalizadas" de segurança trabalhando “legitimamente” em nome de governos de Estados-Nações ou corporações empresariais estatais ou privadas (caso explícito das empresas privadas de segurança operando na ocupação estadunidense no Iraque). Não há fronteiras para o capital e tampouco no emprego máximo da força bruta com chancela governamental.
Zygmunt Bauman classifica este movimento de refugiados como a face do "refugo humano" ou “seres humanos refugados”, ou seja, seres descartados dos processos produtivos e do progresso técnico material. Os refugiados são marginalizados, segregados e chegam a serem perseguidos e até mesmos assassinados como corre em alguns países onde buscam asilo (destaque na Alemanha e África do Sul). A questão dos “estrangeiros” é um dos grandes problemas a ser encarada pela União Européia cujo alguns países-membros já estão adotando políticas de anti-imigração com o retorno de controvertidas leis cada vez mais severas, agressivas e xenófobas. Com o declínio da economia ou queda do poder aquisitivo das populações nativas de algumas regiões européias e, por conseqüência, a ampliação do desemprego local (com raízes globalizadas) os ânimos se acendem e se brutalizam contra refugiados e imigrantes.
É importante destacar que em muitos casos, a figura do refugiado e do “imigrante ilegal” já não existe definições que possam margear alguma diferenciação. Os dramas vividos na fuga para um ambiente menos hostil e com alguma possibilidade de sobrevivência são os elementos constituintes destes dois grupos cada vez mais simétricos e desprotegidos. A ascendente onda do retorno do fantasma da xenofobia, o flerte com o autoritarismo e a atuação de grupos de extremistas na Europa já pode ser considerada outro grave e inquietante problema a ser combatido num continente assolado brutalmente por duas guerras totais no século passado e governos despóticos. Para o psicólogo Oliver Decker, "sempre que a obturação do bem-estar se esfacela, tradições antidemocráticas voltam a se manifestar no vazio resultante" (Deutsche Welle, 2008).
Não existem soluções a curto ou médio prazo para a amortização do drama destas populações peregrinas. Pragmaticamente, a questão política é o caminho para entendimento do encontro de possíveis saídas, porém são as profundas disparidades regionais e globais que polvilham guerras e conflitos socioeconômicos de toda ordem possível. Não existirão tampouco soluções pontuais ou de caráter provisório que farão minimizar a gravidade da situação. Somente uma nova ordem política e meritória de consideração e confiabilidade para buscar mediar conflitos na esfera das Nações Unidas e a efetiva criação de uniões regionais de países, como é o caso da União Européia. É fundamental deslocamento das grandes questões econômicas e comerciais do planeta da Organização Mundial do Comércio (OMC) para o âmbito político das Nações Unidas. Não é possível que o planeta continue a conviver com guetos de miséria e mitigação econômica onde arvoram guerras e disputas fratricidas. Neste cenário sombrio, multiplicam-se velozmente os números de vítimas silenciosas e indefesas cujo destino é a degradação e ostracismo globalizado.
“LIVRE CANTAR”
O governo brasileiro possui o programa para abrigo de refugiados o CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados) em parceira com o Acnur. Segundo o ACNUR, o Brasil abriga aproximadamente 3800 refugiados de cerca de 70 nacionalidades diferentes. Para destacar o trabalho destas organizações foi lançando sem fins comerciais o CD "Livre Cantar", uma coletânea de músicas compostas e executadas por refugiados que vivem no Brasil. Todas as músicas podem ser “baixadas” gratuitamente no formato MP3 no endereço http://www.grupomirrage.com.br/blog.html. Destaco em particular o belo coral africano da faixa 5, “Lumilongi” e a faixa 10, “Clamor pela África”, uma bonita melodia e aparenta uma leve influência gospel em sua letra. Obviamente, que tais canções não irão estar sintonizadas nas rádios mercadológicas por não se enquadrarem no quesito “interesses comerciais”. Como diria o cantor Lobão, para tais rádios movidas ao interesse da indústria histriônica da alienação cultural, somente o “jabá” é aceito. Boa audição!
Referências:
BBC BRASIL. Refugiados e deslocados internos foram 37,4 milhões em 2007, diz ONU. Folha Online, 17/06/2008. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u413105.shtml. Acesso em 23 de junho de 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Despedaçadas. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2005.
Deutsche Welle. Xenofobia é mais difundida na Alemanha do que se pensa. Deustsche Welle, 22/06/2008. Disponível em http://www.dw-world.de/dw/article/0,,3430238,00.html. Acesso em 23 de junho de 2008.