quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Auschwitz à brasileira: Estado apodrecido e corrupção endêmica


No Brasil, a expressão “fundo do poço” não é apenas mera metáfora vazia, mas uma condição existencial da estagnação do Estado. A cada momento e por mais otimista que possa ser a ótica da analise, mais preocupações trazem os dados empíricos da realidade. Os números impressionam: 90% das delegacias paulistanas receberam ou recebem dinheiro proveniente de propinas somente para policiais fazerem “vistas grossas” dentro do esquema milionário de caça-níqueis. Trocando em miúdo, delegados, investigadores e agentes policiais são tão cúmplices do mega-esquema de contravenção quanto os próprios gerentes mafiosos. A fonte é da Agência Estado é resulta da apreensão de documentos de um dos articuladores da máfia dos caça-níqueis. Algo de novo em percentual tão alarmante? A resposta presumida: não! Os números da agenda encontrada com um dos mafiosos, por um setor não-podre da polícia, dão uma dimensão gritante de quão moribundo está o Estado brasileiro.


Não existem parâmetros confiáveis para atestar dados históricos da corrupção dentro da esfera da segurança pública, mas é sabidamente conhecido que a promiscuidade e a corrupção no interior das delegacias de polícia remontariam aos tempos paradisíacos de Adão e Eva (caso existisse algum agente policial para enquadrar a serpente que corrompeu o Paraíso).


A questão que se debate não é o simples fato de ter ou não corrupção dentro da polícia, mesmo porque é uma questão já superada. Infelizmente hoje, quem pode adentrar a uma delegacia de polícia e esperar sinceramente que seu caso seja atendido com êxito? Fazer boletim de ocorrência de algum infortúnio da vida não é mais uma obrigação para fazer valer seus direitos, apenas um mero casuísmo caso haja paciência ou necessidade formal de um simples registro burocrático. Mas diante de todo o fosso da segurança pública, o fundamental é identificar o tamanho do lastro com que a corrupção contaminou os seus setores.


Não adiantam passeadas angelicais de pedidos de Paz ou atividades circenses que beiram ao desespero. A questão é muito mais profunda. Não adianta ter a varinha de condão e invocar num passe de mágica as forças do exército como a panacéia para a segurança pública. A questão se configura quando se percebe o tamanho da corrupção e diluição institucional dentro das polícias.


Corrupta, atabalhoada, descentralizada, ineficiente, pessimamente equipada, policiais com salários irrisórios... A lista do sucateamento da segurança pública não pára por aqui. A violência nutre-se de forma endógena de mais violência, um moto-contínuo sem piedade numa verdadeira espiral de destruição da sociedade e dos ornamentos institucionais. Diante deste calabouço, o Estado brasileiro não é apenas ineficiente e corrupto, é autofágico.

A autofagia que destrói os alicerces básicos da constituição orgânica minimamente civilizada. As profundas chagas derivadas da secular disparidade social criaram bolsões de miséria sem lei ou qualquer futuro alentador. A polícia e sua decadência como poder público é apenas mais um reflexo da diluição do Estado. Aliado à decomposição da educação pública e do sistema sanitário e de saúde, os serviços básicos da teia social se fragmentaram. Tal reflexo atinge diretamente o estágio de esfacelamento e morbidade que se ergue exponencialmente, ano após ano, e sem nenhuma perspectiva de mudança a qualquer tipo de prazo. Possivelmente o exemplo mais emblemático do esfacelamento do Estado repousa angustiadamente no garoto maltrapilho vendedor de balas (quando não passa de uma mera forma desesperada de pedir esmola) nos faróis dos grandes centros urbanos. A sociedade se tornou em um emaranhado de seres ziguezagueantes forjado com uma índole de granito insensível, pustulento e grotesco. É o preço caríssimo da diluição da esfera pública.

Nosso desenvolvimento capitalista é bastardamente senil. Um monstro tão atípico que ora tem números econométricos de uma Suécia, ora é imerso em um misto apodrecido da Faixa de Gaza e Somália. A corrupção não é privilégio de nenhuma sociedade. No caso brasileiro, a corrupção é enraizada, endêmica e faz parte do útero de uma economia subterrânea.


As mazelas são inúmeras, conhecidas e alarmantes. Policiais que ganham salários ridículos, uma estrutura podre que é um verdadeiro convite ao crime e que parte para a propina como engorda de seus soldos. O sistema de transporte privatizado, que somente sobrevive alicerçado sobre uma máfia que arregimenta um expressivo número de trabalhadores na mais total informalidade. Cassinos sob a fachada de bingos lavam e secam dinheiro sujo e patrocinam o narcotráfico. Agentes do Departamento de Trânsito (DETRAN) em conluio com auto-escolas que condicionam a aprovação dos alunos nos exames à liberação de propina de R$ 300,00 por aluno (em valores atuais). Sistema judiciário míope e cínico que privilegia quem pode corromper mais o juiz ou pagar um advogado não tão ruim. A política do superfaturamento de orçamento público e o desvio de verbas em todas as esferas do governo como a única finalidade básica do "homem público": o famigerado enriquecimento ilícito e a política se metamorfoseando em um mero espetáculo eleitoreiro. No submundo da economia do ilícito, tráfico de drogas, armas, mulheres e toda sorte de falcatruas sempre contanto com a participação de agentes do Estado em suas operações e organizações cada vez mais coesas e produtivas. A lista novamente é grande e o espaço para a escrita é ínfimo.


O grau de destruição do Estado não espanta apenas pela dimensão, mas, sobretudo pela falta de visão política de reconstrução do Estado. O espectro político da direita à esquerda não trouxe novidade alguma em suas práticas. Sejam tucanos neoliberais ou petistas do lulismo neoliberal, a agonia pelo imediatismo do voto e o sangue do poder enegreceram suas práticas políticas. Após o regime militar, sucessivos governos ditos "democráticos" não trouxeram grande mudança ao atual quadro social brasileiro. Algum número com manipulação de resultado pode até aliviar a miséria, mas não a elimina. Vinte e cinco anos de severa timidez econômica (média anual quase nunca passando de 4% de crescimento do PIB) aliada à diluição assustadora da ordem social produziram uma modernização excludente que primou pela violência, aglutinação conservadora e segregacionista, além de estampar o esgotamento de um modelo social falido.


Não existe progresso com exclusão e tampouco desenvolvimento amparado por grotescos bolsões de miséria. São termos antípodas e não permitem que sejam enjaulados numa mesma conjectura socioeconômica. A diluição da política se constrói no espaço assimétrico do estrangulamento econômico. Não podemos nos contentar com ilhas de progresso fortuito cercadas por famélicos e subempregados aglomerados nas senzalas pós-modernas. Atualmente, cerca de 40 milhões de brasileiros sobrevivem em situação crítica, ou seja, situados na linha de pobreza. Como justificar tamanha violência dos centros urbanos somente pela linha de raciocínio simplista e fascista, de que basta colocar tanque de guerra, porrada, cacete e cadeia que os problemas se resolvem num passe encantado de pura mágica fascista.


A corrupção policial não é a causa da explosão de violência crescente das últimas décadas, mas o sintoma avassalador do modelo falido de visão governamental. A política sucumbiu à ordem e matrizes econômicas. O Estado, quando existe, é apenas para atender alguns desejos da ordem capitalista. Em outras palavras, o Estado quando funciona abdica de sua autonomia política e reduz a sua ação apenas à manutenção da ordem. Essa ordem se traduz na não-perturbação do fluxo do grande capital e, seguindo esta natureza, a ação estatal se limita a não permitir a criação de obstáculos para a sua circulação. Segregar contingente populacional inteiro em guetos significa que essas pessoas não têm mais importância num modelo capitalista cada vez mais autônomo de trabalhadores.


A violência se acirra com amplitude da agonia proveniente da exclusão e miséria. O permanente estado de beligerância do Rio de Janeiro é mais um monstruoso exemplo de que o poder do Estado não mais existe e pouco se faz presente no espaço social. Substituindo macabramente o papel estatal, quadrilhas paramilitares assumem o papel eclodindo em ondas intermitentes de caos e guerrilha urbana. A questão de São Paulo e as suas gangues organizadas dentro de presídios com participação de advogados e agentes públicos, já cometem ondas de violência explícita sem paralelos na história recente do estado e também reforçam as raízes da diluição do poder estatal.


A corrupção da segurança pública é mais um detalhe pertinente na latrina regurgitada do caos a que o descaso e a irresponsabilidade de uma elite perversa, cega e inconseqüente conduziram este país. O caos é a contraparte da sociedade organizada. É dentro da sociedade que pode se organizar a única bastilha que possibilite o resgate de uma ordem de valores possíveis, para que a prática da política se erga contra a ditadura da ordem econômica. Não podemos apenas se contentar em uma caricatura medíocre e assassina de cidadania: “consumo, logo existo”! E preciso recuperar a idéia de sociedade como espaço socializável dos seres humanos e não apenas como muros do condomínio fechado do apartheid brasileiro.


Quanto mais os habitantes de uma sociedade se refugiarem na utopia egocêntrica, na tentativa de ser proteger em vão da adversidade do caos, mais estarão contribuindo para a construção de um mundo segregado, hostil e violentamente mórbido. Uma espécie de “solução final” (Endlösung) tupiniquim em alusão à nefasta e megalomaníaca política do Estado nazista. Com miopia avassaladora, exaltação extrema do individualismo e a segregação social - assim estão sendo traçados os caminhos para a trágica consolidação do nosso Auschwitz à brasileira.
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Referência: Agência Estado. Das 8 seccionais de São Paulo, 7 sob suspeita. São Paulo, 17/06/2007. Disponível em
http://noticias.uol.com.br/ultnot/2007/06/17/ult4469u5486.jhtm .

domingo, 18 de novembro de 2007

Trabalho infantil ontem e hoje: um brevíssimo panorama da barbárie à brasileira (2a. Parte)


Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), estima-se que existem cerca de 350 milhões de crianças entre cinco e dezessete anos economicamente ativa em todo o planeta, sendo que 60% com menos de quinze anos e 70% estão trabalhando no setor agrícola. Se considerar os que trabalham em tempo parcial, este número situa-se em 250 milhões (61% na Ásia, 32% da África e o restante, e o restante espalhados pela América Latina). Desse número, 73% estão empregados nas piores formas de trabalho infantil, ou seja, 170 milhões se ocupando em trabalho perigoso, 8 milhões de crianças são alocadas em formas degradantes e perversas: o trabalho forçado ou escravo (5,7 milhões), conflito armado (0,3 milhão), prostituição e pornografia (1,8 milhões), tráfico de drogas (1,2 milhões) e outras atividades ilícitas não-catalogadas (0,6 milhões) (Kassouf, 2004).

No Brasil, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001 e reflete os anos 1990, catalogou aproximadamente 3,5 milhões de crianças de cinco a quinze anos que estão trabalhando, o que pode representar cerca de 10% do total das crianças e jovens nessa faixa etária (considerando os que estão procurando emprego). Entre os que possuem dezesseis e dezessete anos, são quase 2,4 milhões de trabalhadores ou 35% do total de jovens nessa faixa etária (Kassouf, 2004a). Portanto, no Brasil, o total de crianças e jovens entre cinco a dezessete anos que tem alguma ocupação é da ordem de 5,5 milhões, ou seja, 12,71% do total de crianças e jovens brasileiros estimados pelo PNAD em 2001.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase meio milhão de meninas brasileiras estão trabalhando em casas de terceiros, executando todos os tipos de serviços domésticos, com jornadas excessivas e com pouca ou nenhuma remuneração financeira e tampouco amparo das leis trabalhistas. São 494.002 trabalhadores domésticos entre cinco e dezessete anos, sendo que desse total, 222.865 estão abaixo dos dezesseis anos.

A incidência de trabalho infantil é maior nas regiões do Nordeste e Sul, com 13% e 10%, respectivamente, das crianças trabalhando. Se for focalizada a distribuição territorial dos trabalhadores-mirins, e ainda utilizando os dados do PNAD de 2001, em termos percentuais (relativos) os principais estados com o maior número de exploração do trabalho de crianças e jovens entre cinco e dezessete anos, em ordem decrescente, Maranhão (22,23%), Tocantins (18, 32%), Piauí (17,41%), Ceará (16,92%), Alagoas (17,07%), Bahia (16,36%) e Pernambuco (16,13%). Todavia, quando se observa os números absolutos de trabalhadores-mirins, o quadro de altera colocando São Paulo (747.885) em destaque, seguindo nas primeiras posições, Bahia (617.009), Minas Gerais (578.728), Maranhão (417.291), Ceará (368.934), Rio Grande do Sul (366.136) e Pernambuco (361.005). Vale enfatizar o caso de São Paulo que possui o status de maior estado do eixo econômico brasileiro é o campeão nacional de exploração do trabalho de crianças e jovens de cinco a dezessete anos em número absoluto e também no número absoluto de trabalhadoras domésticas na mesma faixa etária (quase 70 mil). Resultados contrários ao que muitos paulistas e demais brasileiros tendem a acreditar no mítico capitalismo do progresso material sem espoliação humana!

É importante ressaltar ainda as dimensões sociais das ocupações deste tipo de exploração de trabalho para entender as disparidades existentes nos números apresentados e as disparidades econômicas. O trabalho infanto-juvenil existe com maior freqüência nas regiões agrícolas e em atividades também agrícolas e em famílias que trabalham por conta própria, seja na agricultura, seja em atividades urbanas (destaca-se o pequeno comércio e os serviços). No Brasil, 53% das crianças entre cinco a quinze anos trabalham nas regiões agrícolas e estes percentuais se modificam na medida em que vão atingindo sua maturidade: 30% de ocupação no setor agrícola dos jovens entre dezesseis e dezessete anos e 17% entre dezoito a sessenta anos (Kassouf, 2004b). Segundo Schwartzman (2001), "tipicamente, o trabalho infantil começa no Brasil como uma atividade junto à família, no trabalho agrícola, que vai envolvendo um número crescente de crianças à medida que elas amadurecem". Apesar de a região Sul estar entre as regiões mais desenvolvidas do país, existe uma importante base de agricultura familiar nessa região, o que pode justificar as similaridades dos números da incidência do trabalho infantil das regiões Sul e Nordeste, ou seja, a região com maior gravidade de problemas econômicos do país.

Dessa maneira, não existem zonas de exclusão desse tipo de exploração do trabalho, todas as regiões contribuem sem ressalvas para a exploração do trabalho infantil. Em termos absolutos, o Nordeste possui o maior número de crianças trabalhando, cerca de 1,5 milhão, seguido pela região Sudeste, com 710 mil trabalhadores-mirins (Kassouf, 2004c). Em termos regionais, ele prepondera tanto nos estados mais pobres do país, como a Bahia e o Ceará, como nos estados do Sul, como Santa Catarina e Rio Grande, que têm uma tradição de agricultura familiar mais consolidada. Nas idades mais inferiores, prepondera o trabalho sem remuneração que, quando ocorre, aumenta com a idade: até os quatorze anos, mais da metade das crianças trabalha sem remuneração; aos dezessete, 68% já recebem pelo trabalho que desempenham. Existe uma tendência que resulta na medida em que a população brasileira deixa o campo, o trabalho infantil também é reduzido.

A exploração do trabalho infantil é reforçada quanto aos percentuais de remuneração (isto é, quando existem) auferida pelos trabalhadores-mirins: em média, apenas 35% das crianças recebem salário por seu trabalho, sendo que nas áreas urbanas este percentual é em torno de 58%, contra 13%, em média, nas áreas rurais. Quando recebe alguma remuneração, o trabalho das crianças entre cinco a quinze anos, no ramo agrícola corresponde entre 40 a 100% da renda familiar em 16,5% dos casos pesquisados pela PNAD (2001), no setor da construção civil, o percentual é de 12%, setor de serviços corresponde a 11,2% e comércio e social, respectivamente, 11,2% e 2,9%. Dessa maneira, a participação da remuneração proveniente do trabalho infantil é ainda significativa para a composição da renda de suas famílias. É possível perceber através dos dados, o trabalho infantil se engendra visceralmente na precarização econômica de suas famílias contribuindo para acentuação e perpetuação de sua lamentável e gritante exploração.

Existe ainda um mito na sociedade brasileira que não condena a exploração do trabalho infantil com a veemência e a atenção que o tema exige. Muitas vezes, é até visto com "bons olhos" o trabalho das crianças com as mais inverossímeis justificativas. Para os padrões brasileiros, uma criança fica na escola em torno de 8 anos no ensino fundamental e mais 3 anos no ensino médio, perfazendo 11 anos de ensino básico. Nas áreas rurais, o índice de analfabetismo até os quinze anos chega a 7,87% e o número médio de estudos é 4,29 (ou seja, o máximo atinge o final do fundamental I, a quarta série). No comércio o índice de analfabetismo é de 1,54% e, em média, com 6,24 anos de estudos e no setor da construção civil o índice de analfabetismo e anos de estudo são, respectivamente, 1,71% e 5,47. Ressaltam-se as disparidades regionais em termos de número de anos de estudo de crianças abaixo de quinze anos, no Sudeste é em torno de 6,70 contra 5,19 no Nordeste. Assim, em média, no Sudeste as crianças estudam cerca de 60% da carga básica de estudos enquanto que o percentual é de 47,2% no Nordeste (menos da metade mínimo necessário!).

Os números do trabalho infantil demonstram que os parcos esforços governamentais para eliminar suas práticas nocivas ao desenvolvimento da criança tem sido irrisórios e somente atenuam focos pontuais e por tempo delimitado. A tragédia econômica, social e psicológica para uma criança em estado de exploração trás naturalmente danos irreversíveis para sua vida. As conseqüências são trágicas e conhecidas: com menor escolaridade, menor será a sua renda futura. Sem nenhum grau de instrução ou com baixa escolaridade, quanto mais cedo a pessoa se tornar economicamente ativa, menor será a sua renda ao final de 30 anos de trabalho (sem considerar os impactos deletérios para sua saúde).

Entre outros fatores de natureza socioeconômica de desenvolvimento regional, libertar essas crianças das zonas de exploração do trabalho depende enfaticamente das melhorias gradativas das condições econômicas de suas famílias, além da inadiável fixação da criança em período integral na escola com subsídios mínimos de assistência econômico e social. A vital ampliação das verbas públicas voltadas para a educação e segurança social será plenamente justificada pela efetiva e acelerada política de erradicação das formas de exploração de crianças e jovens e a conseqüente mudança do padrão de vida de suas famílias.

A erradicação do trabalho infantil não deve ser apenas tema de análises conjunturais e estatísticas por parte do governo brasileiro. É pertinente uma mudança cultural por parte de todos os estamentos sociais se posicionando contrário a todas as formas manifestadas de exploração de crianças em nome de alguma atividade econômica. A sociedade brasileira deve se indignar com veemência, cobrar das autoridades responsáveis efetivas ações e não compactuar com os mitos degenerativos da vida de uma criança explorada e, em muitos casos, confinada pelo seu explorador em uma situação de total desprezo pela vida humana. É fundamental ressaltar que sem uma atuante política governamental que diminua sensivelmente as trágicas e seculares disparidades sociais brasileiras a tendência será certamente a perpetuação da barbárie sob a forma de exploração do trabalho infanto-juvenil.

Referências bibliográficas:


KASSOUF, Ana Lúcia (coord.). O Brasil e o trabalho infantil no início do século 21. Brasília: OIT, 2004a.

KASSOUF, Ana Lúcia (coord.). Trabalho infantil no ramo agrícola brasileiro. Brasília: OIT, 2004b.

KASSOUF, Ana Lúcia (coord.). Perfil do trabalho infantil no Brasil, por regiões e ramos de atividade. Brasília: OIT, 2004c.

SCHWATZMAN, Simon. Trabalho infantil no Brasil. Brasília: OIT, 2001.

sábado, 17 de novembro de 2007

Trabalho infantil, ontem e hoje: o capitalismo sem limites (Primeira Parte)

A base de sustentação do sistema capitalista é a exploração do trabalho. Desde seu advento, nos primórdios da Revolução Industrial inglesa em fins do século XVIII, o trabalho de camponeses expulsos do campo para as cidades era a força motriz do sistema fabril. Nada era recusado ou era batizado por algum princípio ético de dignidade humana: homens, mulheres e crianças eram as forças constituintes do modo de produção. O trabalho infantil sempre foi visto com olhares de cinismo e discurso barato. Em todas as grandes potências que hoje se rotulam de "Primeiro Mundo", têm em comum na sua base constituinte de produção material o trabalho infantil em regime de escravidão ou semi-escravidão (ou seja, ganham tão somente para se alimentarem).


Não nos iludimos com os princípios da ética capitalista. A moral desse modo de produção não é a primazia da ética, mas a busca incessante do lucro a qualquer custo. Não surpreende que a China, com seu regime comunista engendra um motor avassalador de um capitalismo que mescla primitivismo técnico e alta tecnologia, fazendo uso maciço do trabalho infantil. A base do capitalismo chinês nas disputas mercantis pelos mercados globais está no uso intensivo de mão-de-obra barata que beira a escravidão ou servidão por dívidas.

Nenhuma potência do G-8 (grupo dos sete países mais ricos do planeta mais a Rússia) tem autoridade moral para questionar a exploração da mão-de-obra de crianças, sejam elas chinesas, brasileiras ou paquistanesas. Em cada momento do seu tempo, as bases fabris desses países usaram largamente o trabalho de suas crianças para a acumulação e ampliação de suas bases capitalistas. O dinheiro pode apagar da lembrança de alguns homens tais degradantes episódios, porém a história sempre tratará de resgatá-los com hombridade.

O mero “denuncismo” pouco adianta num mundo onde a usura incontrolável por mercados e lucros são a tônica do processo. Por exemplo, alguns setores da mídia denunciam o uso do trabalho infantil chinês na confecção de mercadorias para serem vendidos como souvenires para as Olimpíadas de Pequim no próximo ano. A denúncia não é um fato atípico como muitos pensam, porém é simplesmente a regra. Tendo em vista a cortina-de-ferro promovido pelo esquizofrênico Estado chinês, os números da exploração do trabalho infantil podem ser incalculáveis, principalmente nas áreas mais afastadas dos grandes pólos industriais de tecnologia, onde as técnicas são mais rudimentares de produção, como são os casos da confecção de brindes, vestuários, calçados, alguns brinquedos entre outras mercadorias de baixo valor agregado.


No caso do caso do capitalismo tardio brasileiro, a situação não difere dos demais países da vanguarda capitalista. O IBGE estimou em 2003, cerca de 5 milhões de crianças e jovens na idade entre 5 a 17 anos que possuem alguma atividade remunerada, em detrimento da lei que proíbe trabalho para menores de 16 anos. O universo de trabalhador-mirins pode ser muito maior que os números possam registrar uma vez que não é possível coletar dados satisfatoriamente das inúmeras fazendas e pequenas oficinas de trabalho escravo escondidos e espalhados pelas diversas regiões do país.


Não é possível combater sistematicamente o trabalho infantil apenas com bom-mocismo e uma cesta de políticas pífias como as tais “bolsas-auxílio-alguma-coisa” (ou melhor, bolsa de perpetuação da miséria!) e fiscalização frouxa (aliás, quando existe alguma fiscalização com um número de fiscais irrisórios para o quadro nacional!). No caso do Brasil, os números governamentais podem ter algum declive, mas jamais teremos uma erradicação completa do trabalho infantil. Na prática, em nenhum lugar do mundo onde existe superexploração do trabalho infantil terá mudança substancial sem abalar estruturalmente o sistema capitalista que o alimenta e reproduz repetitivamente de forma quase perpétuo.


A ótica do sistema capitalista de exploração do trabalho como vias pavimentadas para o lucro, jamais libertará de bom-agrado estas milhares de crianças e jovens indefesas, sem destino e renda. Associada a uma perversa distribuição de renda que destrói famílias inteiras e se vendo na obrigação compulsória de sustentá-las de forma quixotesca. Este contingente de trabalhador-mirins se submetem à mercado para vender a única coisa quer restam entre seus dedos: sua força de trabalho e selar seu destino nas inúmeras pocilgas que não-raro, está associada à uma grande empresa "eticamente" cumpridora de seus obrigações fiscais perante o Estado. Um exemplo bastante conhecido é a arrogante loja da elite paulistana, a Daslu, que comprava contrabando de mercadorias pirateadas a baixo custo com mão-de-obra de exploração chinesa e vendia com preços exorbitantes como se fossem bugigangas européias, sem passar pelo fisco e não pagar nenhum imposto. Será mera inocência de algum desavisado gerente de importação da aburguesada loja? Na dinâmica capitalista, a exploração é a norma e não a exceção.


Do ponto de vista histórico, não existiu construção capitalista nas sociedades mais desenvolvidas do ponto de vista de acumulação de bens, sem o uso maciço de mão-de-obra com precárias condições de trabalho (semi-escravidão), incluindo o largo uso do trabalho de mulheres e crianças em sua máquina de moer gente e produzir dinheiro. Aliás, é justamente desta exploração que geraram dividendos para a acumulação primitiva possibilitar novos saltos rumo à novos estágios de produção.

Também não existem produção e distribuição capitalista sem o papel do "atravessador", ou seja, o intermediário entre a produção e o consumo final. Atrás de uma criança escravizada pelo trabalho há sempre uma grande loja, empresa ou indústria de comportamento "ético e legal" que vampirizam o trabalho dessas crianças.

O trabalho infantil das crianças brasileiras e chinesas é um bom exemplo de uma verdadeira vergonha da humanidade, entre tantas outras misérias em nome da disputa incomensurável pelos lucros, que produz uma acumulação de bens e capital com o suor, lágrimas e dedos estourados desse enorme continente populacional de escravos-mirins.

A volúpia e a desfaçatez dos homens e mulheres que detém as rédeas do monstruoso modo de superexploração capitalista, beira ao completo canibalismo primitivo em nome da panspermia do dinheiro a qualquer custo.


quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A indifereça diante da barbárie

Oficial Karl Hoecker e funcionárias nazistas descansam em região próxima a Auschwitz


O jornal estadunidense, The New York Times divulgou matéria a respeito da recuperação de fotos que data da Segunda Grande Guerra, em 1944, e que serão exibidas no Museu do Holocausto, situado nos Estados Unidos. Num total de 116 imagens inéditas do grande público, é possível notar os belos e risonhos semblantes dos oficiais da SS nazista, a elite das tropas de Adolf Hitler, que descrevem um cotidiano pouco usual de lazer, descontração e informalidade em pleno campo de extermíno de Auschwitz. ( A matéria poderá ser acessada em sua versão em português disponível no sítio da UOL clicando aqui.)

Segundo o jornal de Nova Iorque: "Em vez de mostrar os homens desempenhando suas tarefas no campo de concentração, as fotos retratavam, entre outras coisas, um grupo de homens da SS cantando alegremente, acompanhado de um acordeão; Hocker acendendo a árvore de Natal do campo, jovens mulheres da SS brincando alegremente e oficiais relaxando, alguns sem suas vestes, fumando um cigarro". A barbárie poderá ser vista nitidamente nessas imagens, Auschwitz como um teatro de operações cuja execução de suas tarefas desenvolvidas no dia-a-dia trouxeram um grande e sádico prazer para os exterminadores nazistas.

O contraponto da barbárie se caracteriza pelo ambiente de conforto e aparente tranquilidade dos homens de Hitler em detrimento dos horrores implementados dentro do campo onde prisioneiros do regime estavam sofrendo todo um sortilégio de desgraça faustiana: fome, trabalhos forçados, maus tratos e doenças. Morrem cerca de 1,1 milhões de pessoas sob as mais macabras e fúnebres formas em Auschwitz. Tudo para satisfazer a aventura megalomaníaca de Hitler e seus comandantes nazistas para os esforço para dominar o mundo e "purificar raça ariana", culminando no extermíno de milhares de judeus, ciganos, inimigos do regime e outras etnias.

Com o término da guerra e a derrota de Hitler para os Aliados, Auschwitz foi liberado pelas forças soviéticas no dia 27 de janeiro, abandonado e evacuado no dia 18 de janeiro de 1945.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

A guerra civil fluminense: violência, narcotráfico e a falência do Estado




Cachorro latindo

Criança chorando

Vagabundo vazando

É o Bope chegando

Tropa de elite, osso duro de roer

Pega um, pega geral, também vai pegar você

(Versos cantados pelos policiais do Bope durante os exercícios físicos e divulgado como "hit" em vários sites da internet como o YouTube)

1. A barbárie sem limites

Qual o limite entre a civilização e a barbárie? No Brasil das desigualdades enraizadas, imerso nos rincões mais inóspitos dos centros econômicos regionais e locais com a proliferação das favelas jogadas à sua própria sorte. O limite há muito tempo já foi ultrapassado. A estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU) de que, em 2020, haverá cerca de 1,4 bilhão de pessoas morando em favelas em todo o mundo, das quais 162 milhões na América Latina e no Caribe (as áreas mais alarmantes se encontram na região da África Subsaariana). Segundo a Agência Brasil, o Brasil conquista atualmente uma liderança negativa "em termos de habitação precária na região latino-americana e caribenha é exercida pelo Brasil, onde cerca de 52,3 milhões residem em favelas, de acordo com dados do UN-Habitat, programa da Organização das Nações Unidas (ONU) para assentamentos humanos. Cerca de 90% do déficit habitacional brasileiro, estimado em 7 milhões de moradias está concentrado na população que recebe até três salários mínimos por mês"(1).

O fenômeno brasileiro da "favelização" tem origem no final do século XIX. Durante a primeira década do século XX, as favelas começam a se desenvolver, principalmente depois da abolição da escravatura e cujo processo foi deflagrado sem numa integração socioeconômica os escravos libertados. É alto o grau de imprecisão sobre o número exato de favelas no Rio de Janeiro, incluindo-se neste quesito a própria indefinição consensual do conceito de "favela". Em 2003, a UN-Habitat produziu o mais recente relatório global sobre assentamentos humanos, “The Challenger of Slums”. O documento classificava o termo inglês “slums” em quarto tipos de assentamentos para o caso brasileiro: favela, loteamento, invasões e cortiços (2).

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou dados de 518 favelas enquanto o Instituto Pereira Passos (IPP), órgão da Prefeitura do Rio de Janeiro, trabalha com um número ao redor de 750. Terror, sangue e tráfico são os componentes explosivos que encarceram milhares de brasileiros sitiados dentro de nichos de sua própria nação. Não é possível generalizar pejorativamente as favelas brasileiras como um refúgio exclusivo de criminosos, mas um espaço deletério da vida social de milhares de brasileiros sem abrigo no asfalto e sem esperança no futuro. Hoje, a violência urbana é a uma enfermidade coletiva que merece ser tratada como epidemia social das mais alarmantes. O caso do Rio de Janeiro merece um particular destaque.

2.“Quem poupa o lobo, sacrifica a ovelha”

A edição não-oficial do filme, “Tropa de Elite” (2007), dirigido por José Padilha, contempla um esboço da guerra civil travada nos morros no Rio de Janeiro. Sem retoques e com muita acidez, o drama focaliza a violência da "Cidade Maravilhosa" solapada pelas rajadas macabras de metralhadoras a partir da visão de três policiais do BOPE, Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro. Em tese, o BOPE é um batalhão pertencente ao conjunto da Polícia Militar, mas na prática, é um destacamento autônomo, ou seja, a “tropa de elite”, responsável pelas operações de alto risco as quais a “polícia convencional” não consegue resolver. No filme, Padilha traça um retrato bastante do cotidiano da polícia, como sendo um trabalho que mistura um certo heroísmo, corrupção, assassinato e tortura. O clima presente é de uma guerra declarada entre policiais e traficantes, os chamados “comandos”, cuja paz sempre instável entre os dois lados é movida à corrupção. A rigor, não existem heróis ou bandidos na apocalíptica guerra travada pelos pontos de drogas no Rio de Janeiro, onde os códigos babilônicos soam muito mais alto que os códigos jurídicos do Estado de Direito: olho por olho ou “chumbo por chumbo”, é assim que se constrói a barbárie cotidiana presente nos morros fluminenses.

"Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamentos ou punições cruéis, desumanas ou degradantes" é o que destaca o artigo 5o. da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948. Para a maioria das polícias, tal artigo não passa de uma grande "bobagem dos Direitos Humanos". Em sites como o YouTube é possível encontrar vídeos caseiro de apologia do trabalho do BOPE. Os vídeos, sem uma clara identificação de seus autores, são sempre regados a muita violência explícita e ostentação de fartos armamentos de alto poder de destruição e, quase sempre, exclusivos das forças armadas. A parábola atribuída a Victor Hugo, "quem poupa o lobo, sacrifica a ovelha" é constante nos vídeos divulgados. Um verdadeiro espetáculo circense onde alguns "admiradores" da repressão policial procuram fazer deliberadamente uma demonstração de força tal como às facções do crime organizado costumam se auto-rotularem na rede mundial de computadores. Uma guerrilha eletrônica acéfala, explosiva e completamente inútil.

Interessante analisar os métodos empregados pelo o BOPE tanto na ação dentro das favelas, quanto o processo de treinamento de seus soldados. O filme de Padilha refaz com bastante precisão a insanidade métodos usados pelo BOPE. Enquanto o apodrecido Estado fluminense não ainda sofre intervenção federal (o que na prática ocorreu somente durante os Jogos Pan-americanos), a população dos morros e adjacências é empurrada para o campo de batalha e se transformando em verdadeiros alvos vivos. A polícia convencional, como agente do Estado, está igualmente falida, logo, cabe então ao BOPE realizar o trabalho “heróico” de subida dos morros, apreensão de drogas, armas e desmantelamento de quadrilhas de traficantes. Tudo muito lindo, maravilhoso e cinematográfico! Os “Rambos de preto” uniformizados em nome da suposta lei é o que resta de poder do Estado para buscar combater o tráfico. Como soldados de um Estado esfacelado e corrupto, os homens do BOPE fazem suas próprias leis e julgamentos como uma própria seita. Nos treinamentos, tanto no filme como nos vídeos divulgados na internet, enquanto fazem uma série de exercícios físicos e técnicos, os candidatos a ingressarem no BOPE entoam alienadamente hinos da tropa que traduzem o “espírito do grupo”: "Homem de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar corpo no chão. Homem de preto, o que é que você faz? Eu faço coisas que assustam o satanás!".

Uma característica absurdamente notável do BOPE são os carros blindados que sobe os morros e resistentes até mesmo a tiros de fuzil AR-15. O veículo blindado é convencionalmente chamado de "Pacificador", mas é mais conhecido pela população do morro como "Caveirão". A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) defende o uso do veículo em "operações policiais especiais" nos locais onde há maiores dificuldades da polícia no conflito com traficantes. Estima-se que as Polícias Civil e Militar já contam com oito viaturas desse tipo, sendo uma da Polícia Civil e as demais da Polícia Militar. Não há armas de fogo acopladas ao Caveirão e são levadas pelas equipes de apoio terrestre. Segundo a estratégia policial, o veículo tem como função romper barreiras físicas impostas pelos traficantes em seus "territórios", sendo ainda utilizado no resgate de feridos em confrontos. Entretanto, a chegada do Caveirão no morro é um sinal de desespero para a população que busca abrigo entre o tiroteio de guerrilha entre policiais e traficantes, assim como sentencia um dos hits” do BOPE em sites da internet: "O BOPE vai te pegar!".

Pior que na Bósnia ou Haiti, a guerra civil no Rio de Janeiro vem contabilizando saldos de mortos que batem absurdos recordes. Diante da falência do Estado de Direito, a guerra é inevitável. O clima onipresente da violência tendo ponto principal a disputa pelo bilionário comércio das drogas. O conflito generalizado entre traficantes com táticas de guerrilha, mercenários com distintivos de policiais (as chamadas “milícias”, ou seja, um segmento da “banda podre” das polícias e inicialmente foram desastradamente incentivados pelo governo do Rio de Janeiro) ocupando morros e a agressividade da atuação policial para “matar com eficiência e dignidade”. A instável Paz entre os protagonistas dos combates são mediados pela farta distribuição de propina entre os elos da cadeia dos agentes dessa guerra. Na mira de tiro está à população pobre dos morros, marginalizada, estigmatiza e indefesa.


Cabe ainda a pergunta aos comandantes da elite da polícia fluminense e ao seu chefe maior, o governador: quem foi adestrado para matar é capaz de arregimentar a Paz?


3."Eu vou pegar a sua alma"


O caso do BOPE é emblemático. Uma tropa movida a uma precisão invejável para banhar os morros cariocas com violência e sangue seja ele de qual for a sua natureza. A oferta e demanda são as premissas básicas da economia de qualquer negócio dentro do mundo capitalista e o bilionário comércio regido pelo narcotráfico não é diferente. No asfalto, a classes abastadas dos bairros ditos como “nobres” são os mercadores consumidores de todo e qualquer sortilégio de drogas. Os filhos da burguesia fluminense e seus vorazes narizes irrequietos são retratados com fortes cores sociais no filme de Padilha. O patrocínio do tráfico pelos “burguesinhos” é apontado como a causa crucial de criminalidade e motivador da violência. Certamente, não é apenas o dinheiro da alucinógena burguesia fluminense que injeta violência para dentro e fora dos morros, mas uma cultura permanente de corrupção e impunidade onde o “jeitinho brasileiro” é escanc escandaradamente "os morros, mas uma cultura permanente de corrupçitos as e traficantes. Tudo muito lindo e maravilhoso se aradamente praticado.

Um documento divulgado em conjunto por três ONGs que trabalham com Direitos Humanos (a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, a Justiça Global Brasil e a Anistia Internacional), faz uma campanha contra o uso do carro blindado, o Caveirão, nas incursões policiais dentro das favelas fluminenses: "Nas operações realizadas pelo caveirão, a polícia faz ameaças psicológicas e físicas aos moradores, com o intuito de intimidar as comunidades como um todo. O emblema do BOPE – uma caveira empalada numa espada sobre duas pistolas douradas – envia uma mensagem forte e inequívoca: o emblema simboliza o combate armado, a guerra e a morte" (3).

A linguagem tratada pelos auto-falantes na parte externa dos carros blindados que anuncia a chegada da política é ecoada em um ritmo que beira à uma macabra procissão. No entanto, parece não pairar dúvidas a respeito da tarefa dessa polícia descontrolada: subir o morro para impor o medo, intimidação, coerção, tortura e atirar quem se encontra pela frente fazendo justiça no meio da rua: “Crianças, saiam da rua, vai haver tiroteio” ou de forma mais ameaçadora: “Se você deve, eu vou pegar a sua alma”. Quando o caveirão se aproxima de alguém na rua, a polícia grita pelo megafone: “Ei, você aí! Você é suspeito. Ande bem devagar, levante a blusa, vire... agora pode ir...” (4).

Em outro trecho diz ainda o documento das ONGs: "A adoção dessa política de segurança pública que combate a violência com violência, utilizando uma estratégia de confrontação e intimidação, pouco colabora para a segurança dos policiais, que têm morrido muito mais fora das operações policiais, no chamado “bico” ou em episódios de vingança. [...] A polícia tem o direito legítimo de se proteger enquanto trabalha. Mas também tem o dever de proteger as comunidades que está servindo. O policiamento agressivo tem resultado em grande sofrimento para as comunidades pobres do Rio, bem como sua perda de confiança na capacidade do estado de manter e garantir a segurança." (5)

4. A falência do Poder Público

O banho de sangue produzido a cada investida policial nos morros fluminenses é um tétrico espetáculo da violência no seu estágio mais primitivo. O paradoxo desse sistema de execução permanente de pessoas a exaustão é contido quando existe um pacto selado pela propina que muitos policiais civis e militares (a chamada "banda podre") recebem do tráfico, o "arrego", selando inescrupulosamente a conivência do Poder Público e todo o arsenal de contravenções que o dinheiro das drogas pode corromper. Além dos vastíssimos lucros provenientes do tráfico, a "banda podre" das polícias também mantêm seus negócios em outros segmentos num lucrativo comércio que combina desde exploração de bailes funk e seus “proibidões” à roubo de carga, passando pelo jogo do bicho e seqüestros. Praticamente, em todos os ramos do crime organizado, há necessariamente a conivência e participação de policiais de forma direta ou indiretamente. A péssima remuneração dos agentes policiais é mais um grande atrativo para que a propina e o negócio ilícito possam ser mais cativantes do que seu trabalho de agente público. Segundo o cientista político, Paulo Sérgio Pinheiro e Guilherme A. Almeida: "A violência urbana subverte e desvirtua a função das cidades, drena recursos públicos já escassos, ceifa vidas -- especialmente as dos jovens e dos mais pobres--, dilacera famílias, modificando nossas existências dramaticamente para pior. De potenciais cidadãos, passamos a ser consumidores do medo" (6).

A complexidade do caos social não é exclusividade do Rio de Janeiro, porém é neste Estado ocorre a mais latente corrosão do Poder Público. O maremoto de violência não poupa ninguém e captura cada vez mais jovens e crianças para as fileiras do narcotráfico. Traficantes cada vez mais jovens e violentos dominam as "bocas de fumo" com uso de arsenal cada vez mais pesado com alto poder de fogo. No entanto, nenhuma novidade que não seja de conhecimento público. A questão pertinente é a completa letargia da corrupta elite da política carioca que se nutre da desgraça produzida pelas favelas mergulhadas na violência do tráfico para patrocinar suas campanhas eleitoreiras, além de cultivar interesses medíocres e mesquinhos.

5. “Imperialismo brando” e a desarticulação da sociedade sob a égide neoliberal


As privatizações das ações sociais retratam a desarticulação e enfraquecimento do Estado sob os auspícios das políticas neoliberais e enfraquecimento das práticas e ações dos grupos de esquerda. No vácuo da ausência de uma teia de proteção social do Estado, foi se erguendo um arquipélago de organizações não-governamentais (ONGs) cuja idoneidade é de difícil aferição, invadiram os morros em supostas práticas humanitárias. Sempre com o olhar atento do chefe do tráfico da região, em teoria, essas ONGs procuram fazer o trabalho social que o Estado deveria fazer e decididamente renunciou ao seu dever. Existe uma estreita correlação entre ONGs internacionalizadas no Terceiro Mundo, privatização dos serviços públicos e os empréstimos do Banco Mundial. Em sua rápida passagem pelo Banco Mundial, o Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, chamou de “pós-Consenso de Washington” essas estreitas relações de supostos grupos de ajuda humanitária e interesses de corporações financeiras. Tais práticas também foram denominadas como “imperialismo brando” (7).

A cultura da barbárie predomina quando mescla indecifravelmente o permitido e o ilícito. Não é possível saber com precisão a distinção entre o "certo" e o "errado". Num mundo batizado pela barbárie, a ética é a primeira vítima de bala perdida. Crianças que empunham fuzis e protegem guetos do comércio de drogas é um dos bizarros espetáculos que o injusto e falido Estado brasileiro proporciona ao mundo. Uma juventude paupérrima e sem saída ceifada nos campos de concentração do narcotráfico cujo único destino é quase invariavelmente o cemitério. Que futuro existe para um jovem pobre sem a menor perspectiva e tenta se equilibrar entre a violência dos "comandos" e a polícia?

A pobreza não gera necessariamente violência, mas degradação. A luta irracional pela sobrevivência transforma homens, mulheres, adolescentes e até mesmo crianças em canibais na insana guerra de todos contra todos e abençoada pela corrupção de policiais e políticos. A indiferença, a inércia e a incompetência política aliada visceralmente com a impunidade e a corrupção de diversas esferas do Poder Público reproduzem dramaticamente toda a hecatombe social parido pela junção catastrófica da miséria com a violência. O resultado é a inevitável luta pela sobrevivência do mais sórdido darwinismo social.

O Rio de Janeiro não é a única ilha com exclusividade a postular o privilégio do medo. Nos grandes e médios centros econômicos pelo Brasil, a sociedade acuada pelo medo da violência produz um nicho cada vez mais lucrativo: a indústria da segurança. O patrocínio da segurança somente é possível pela promoção indistinta da insegurança. A título de exemplo, já se cogitou a proposta de fazer um batalhão especial de policiais privados para atender exclusivamente as ocorrências de roubos de automóveis. Somente para a disseminação do medo, seguros, equipamentos de vigilância e polícia privada torna-se um nicho comercial com grande utilidade e longe das intempéries de crises econômicas.

A ideologia liberal disseminada amplamente na sociedade cultiva um arraigado cultivo do individualismo e o consumismo desenfreado. Tudo e todos são transformados em permanentes mercadorias e cabe ao consumidor se digladiar dentro das relações sociais para o acúmulo de seus bens. A droga é uma mercadoria que ao mesmo tempo promete saciar a suposta sensação de liberdade do indivíduo como ao mesmo tempo encarcera o usuário a dispor de mais dinheiro para adquirir mais mercadoria alucinógena. O sedutor mercado das drogas não encontra crise ou obstáculos para crescer e prosperar quase sem limites.

Portanto, o espaço público é ocupado pelo teatro de operações de uma guerra permanente pelo controle e distribuição de drogas para seus potenciais consumidores. Um lucrativo comércio onde um único quilo de pó se multiplica velozmente sua reprodução e também seus lucros. Nas redes de comando desta verdadeira indústria, onde o dinheiro fácil e a propina são componentes fundamentais para alimentar a conta bancária de uma miríade de “interessados” e entre eles se encontram policiais, advogados, juízes e políticos. Para a população que esta a margem do processo intestinal desta economia subterrânea resta somente arcar com a explosão secundária de violência. Secundária por um motivo estritamente profissional: o livre comércio não deseja interrupções ou bloqueios de nenhuma natureza. A violência impregnada dentro e fora das favelas é a manifestação do desequilíbrio da cadeia de interesses e se transforma no conflito pelo território das “disputas comerciais”. Num mundo marcado pelo permanente estado de barbárie, não existe mais a distinção entre liberdade e cárcere, todos são cooptados pelo medo permanente de uns contra os outros. O coletivo cede espaço para soluções individualistas totalmente inócuas e que fazem fomentar cada vez mais o estado de agressividade e violência social.

6. Considerações finais


No caso particular do Rio de Janeiro, o combate efetivo ao narcotráfico ao estilo de uma “cruzada messiânica” não produzirá nenhum efeito se for tão somente uma tarefa baseada na testosterona e na violência dos seus agentes repressivos. Da violência explicita somente repercutirá mais violência gratuita e generalizada. Pouco adianta fazer a maquilagem das estatísticas que de um passe de mágica os números são trocados ou ampliar infinitamente o número de agentes repressivos ou vagas em prisões. Não existem soluções mágicas, caricaturais e imediatas, exceto para uma vastidão de inescrupulosos políticos em períodos eleitoreiros.

Para uma visão mais abrangente do problema, é imperativo um amplo conjunto de ações que passa necessariamente pela descriminalização das populações dos morros e a ampliação substancial do suporte social do Estado. Segundo Vera M. Batista: “A política criminal de drogas imposta pelos Estados Unidos, assim como a econômica, é o maior vetor de criminalização seletiva nas periferias brasileiras: a prisão parece ser o principal projeto para a juventude popular” (8). Sem um projeto alternativo de “ocupação sócio-educacional” dos morros aliada a uma ampla política de geração de empregos atrelada ao desenvolvimento econômico e urbano, dificilmente as favelas deixaram de ser uma “terra de ninguém”. Existem alguns projetos bem sucedidos em favelas fluminenses, mas insuficientes para resolver a magnitude e complexidade que a questão necessita.

Para alguns setores da sociedade que se postulam como “democráticos”, mas que flertam o autoritarismo com cores fascista, é importante ressaltar que não será exterminando os moradores pobres de ruas, guetos ou favelas que se eliminará a pobreza e tampouco a violência. Não é a pobreza responsável pela criminalidade e o narcotráfico. É justamente o inverso: o comércio de armas e drogas se alimenta parasitamente do descalabro social e da pobreza atávica das camadas mais frágeis da sociedade. O próprio sistema capitalista necessita de um perdedor para que o outro sobressaia pisoteando as demais cabeças vencidas. Ademais, pouco adiantará o encarceramento de população marginalizada em um número infinito de prisões. Não será o confinamento extremo da pobreza que resultará na diminuição do estado de guerra permanente dentro e fora dos morros fluminenses.

Ignorar o drama de imensos contingentes populacionais que vivem torturados sobre a mira de metralhadoras no meio da guerra civil fluminense é fechar os olhos para o futuro da suposta democracia brasileira. E acima de tudo, é convidar a barbárie a se perpetuar nas estruturas sociais desse país.

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Notas & Referências

(1) Agência Brasil. Disponível em Acesso em 07 de setembro de 2007.

(2) UM-Habitat. “The Challenge of Slums: Global Report on Human Settlements”, 2003.

(3) a (5) Justiça Global Brasil. Disponível em http://www.global.org.br. Acesso em 07 de setembro de 2007.

(6) Pinheiro, Paulo Sérgio e Almeida, Guilherme Assis. "Violência Urbana". São Paulo: Publifolha, 2007.

(7) Davis, Mike. “Planeta Favela”. São Paulo: Boitempo, 2006.

(8) Batista, Vera Malaguti. “A questão criminal no Brasil contemporâneo”. Margem Esquerda, no. 8, pp. 37-41. São Paulo: Boitempo, 2006.