quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Auschwitz à brasileira: Estado apodrecido e corrupção endêmica


No Brasil, a expressão “fundo do poço” não é apenas mera metáfora vazia, mas uma condição existencial da estagnação do Estado. A cada momento e por mais otimista que possa ser a ótica da analise, mais preocupações trazem os dados empíricos da realidade. Os números impressionam: 90% das delegacias paulistanas receberam ou recebem dinheiro proveniente de propinas somente para policiais fazerem “vistas grossas” dentro do esquema milionário de caça-níqueis. Trocando em miúdo, delegados, investigadores e agentes policiais são tão cúmplices do mega-esquema de contravenção quanto os próprios gerentes mafiosos. A fonte é da Agência Estado é resulta da apreensão de documentos de um dos articuladores da máfia dos caça-níqueis. Algo de novo em percentual tão alarmante? A resposta presumida: não! Os números da agenda encontrada com um dos mafiosos, por um setor não-podre da polícia, dão uma dimensão gritante de quão moribundo está o Estado brasileiro.


Não existem parâmetros confiáveis para atestar dados históricos da corrupção dentro da esfera da segurança pública, mas é sabidamente conhecido que a promiscuidade e a corrupção no interior das delegacias de polícia remontariam aos tempos paradisíacos de Adão e Eva (caso existisse algum agente policial para enquadrar a serpente que corrompeu o Paraíso).


A questão que se debate não é o simples fato de ter ou não corrupção dentro da polícia, mesmo porque é uma questão já superada. Infelizmente hoje, quem pode adentrar a uma delegacia de polícia e esperar sinceramente que seu caso seja atendido com êxito? Fazer boletim de ocorrência de algum infortúnio da vida não é mais uma obrigação para fazer valer seus direitos, apenas um mero casuísmo caso haja paciência ou necessidade formal de um simples registro burocrático. Mas diante de todo o fosso da segurança pública, o fundamental é identificar o tamanho do lastro com que a corrupção contaminou os seus setores.


Não adiantam passeadas angelicais de pedidos de Paz ou atividades circenses que beiram ao desespero. A questão é muito mais profunda. Não adianta ter a varinha de condão e invocar num passe de mágica as forças do exército como a panacéia para a segurança pública. A questão se configura quando se percebe o tamanho da corrupção e diluição institucional dentro das polícias.


Corrupta, atabalhoada, descentralizada, ineficiente, pessimamente equipada, policiais com salários irrisórios... A lista do sucateamento da segurança pública não pára por aqui. A violência nutre-se de forma endógena de mais violência, um moto-contínuo sem piedade numa verdadeira espiral de destruição da sociedade e dos ornamentos institucionais. Diante deste calabouço, o Estado brasileiro não é apenas ineficiente e corrupto, é autofágico.

A autofagia que destrói os alicerces básicos da constituição orgânica minimamente civilizada. As profundas chagas derivadas da secular disparidade social criaram bolsões de miséria sem lei ou qualquer futuro alentador. A polícia e sua decadência como poder público é apenas mais um reflexo da diluição do Estado. Aliado à decomposição da educação pública e do sistema sanitário e de saúde, os serviços básicos da teia social se fragmentaram. Tal reflexo atinge diretamente o estágio de esfacelamento e morbidade que se ergue exponencialmente, ano após ano, e sem nenhuma perspectiva de mudança a qualquer tipo de prazo. Possivelmente o exemplo mais emblemático do esfacelamento do Estado repousa angustiadamente no garoto maltrapilho vendedor de balas (quando não passa de uma mera forma desesperada de pedir esmola) nos faróis dos grandes centros urbanos. A sociedade se tornou em um emaranhado de seres ziguezagueantes forjado com uma índole de granito insensível, pustulento e grotesco. É o preço caríssimo da diluição da esfera pública.

Nosso desenvolvimento capitalista é bastardamente senil. Um monstro tão atípico que ora tem números econométricos de uma Suécia, ora é imerso em um misto apodrecido da Faixa de Gaza e Somália. A corrupção não é privilégio de nenhuma sociedade. No caso brasileiro, a corrupção é enraizada, endêmica e faz parte do útero de uma economia subterrânea.


As mazelas são inúmeras, conhecidas e alarmantes. Policiais que ganham salários ridículos, uma estrutura podre que é um verdadeiro convite ao crime e que parte para a propina como engorda de seus soldos. O sistema de transporte privatizado, que somente sobrevive alicerçado sobre uma máfia que arregimenta um expressivo número de trabalhadores na mais total informalidade. Cassinos sob a fachada de bingos lavam e secam dinheiro sujo e patrocinam o narcotráfico. Agentes do Departamento de Trânsito (DETRAN) em conluio com auto-escolas que condicionam a aprovação dos alunos nos exames à liberação de propina de R$ 300,00 por aluno (em valores atuais). Sistema judiciário míope e cínico que privilegia quem pode corromper mais o juiz ou pagar um advogado não tão ruim. A política do superfaturamento de orçamento público e o desvio de verbas em todas as esferas do governo como a única finalidade básica do "homem público": o famigerado enriquecimento ilícito e a política se metamorfoseando em um mero espetáculo eleitoreiro. No submundo da economia do ilícito, tráfico de drogas, armas, mulheres e toda sorte de falcatruas sempre contanto com a participação de agentes do Estado em suas operações e organizações cada vez mais coesas e produtivas. A lista novamente é grande e o espaço para a escrita é ínfimo.


O grau de destruição do Estado não espanta apenas pela dimensão, mas, sobretudo pela falta de visão política de reconstrução do Estado. O espectro político da direita à esquerda não trouxe novidade alguma em suas práticas. Sejam tucanos neoliberais ou petistas do lulismo neoliberal, a agonia pelo imediatismo do voto e o sangue do poder enegreceram suas práticas políticas. Após o regime militar, sucessivos governos ditos "democráticos" não trouxeram grande mudança ao atual quadro social brasileiro. Algum número com manipulação de resultado pode até aliviar a miséria, mas não a elimina. Vinte e cinco anos de severa timidez econômica (média anual quase nunca passando de 4% de crescimento do PIB) aliada à diluição assustadora da ordem social produziram uma modernização excludente que primou pela violência, aglutinação conservadora e segregacionista, além de estampar o esgotamento de um modelo social falido.


Não existe progresso com exclusão e tampouco desenvolvimento amparado por grotescos bolsões de miséria. São termos antípodas e não permitem que sejam enjaulados numa mesma conjectura socioeconômica. A diluição da política se constrói no espaço assimétrico do estrangulamento econômico. Não podemos nos contentar com ilhas de progresso fortuito cercadas por famélicos e subempregados aglomerados nas senzalas pós-modernas. Atualmente, cerca de 40 milhões de brasileiros sobrevivem em situação crítica, ou seja, situados na linha de pobreza. Como justificar tamanha violência dos centros urbanos somente pela linha de raciocínio simplista e fascista, de que basta colocar tanque de guerra, porrada, cacete e cadeia que os problemas se resolvem num passe encantado de pura mágica fascista.


A corrupção policial não é a causa da explosão de violência crescente das últimas décadas, mas o sintoma avassalador do modelo falido de visão governamental. A política sucumbiu à ordem e matrizes econômicas. O Estado, quando existe, é apenas para atender alguns desejos da ordem capitalista. Em outras palavras, o Estado quando funciona abdica de sua autonomia política e reduz a sua ação apenas à manutenção da ordem. Essa ordem se traduz na não-perturbação do fluxo do grande capital e, seguindo esta natureza, a ação estatal se limita a não permitir a criação de obstáculos para a sua circulação. Segregar contingente populacional inteiro em guetos significa que essas pessoas não têm mais importância num modelo capitalista cada vez mais autônomo de trabalhadores.


A violência se acirra com amplitude da agonia proveniente da exclusão e miséria. O permanente estado de beligerância do Rio de Janeiro é mais um monstruoso exemplo de que o poder do Estado não mais existe e pouco se faz presente no espaço social. Substituindo macabramente o papel estatal, quadrilhas paramilitares assumem o papel eclodindo em ondas intermitentes de caos e guerrilha urbana. A questão de São Paulo e as suas gangues organizadas dentro de presídios com participação de advogados e agentes públicos, já cometem ondas de violência explícita sem paralelos na história recente do estado e também reforçam as raízes da diluição do poder estatal.


A corrupção da segurança pública é mais um detalhe pertinente na latrina regurgitada do caos a que o descaso e a irresponsabilidade de uma elite perversa, cega e inconseqüente conduziram este país. O caos é a contraparte da sociedade organizada. É dentro da sociedade que pode se organizar a única bastilha que possibilite o resgate de uma ordem de valores possíveis, para que a prática da política se erga contra a ditadura da ordem econômica. Não podemos apenas se contentar em uma caricatura medíocre e assassina de cidadania: “consumo, logo existo”! E preciso recuperar a idéia de sociedade como espaço socializável dos seres humanos e não apenas como muros do condomínio fechado do apartheid brasileiro.


Quanto mais os habitantes de uma sociedade se refugiarem na utopia egocêntrica, na tentativa de ser proteger em vão da adversidade do caos, mais estarão contribuindo para a construção de um mundo segregado, hostil e violentamente mórbido. Uma espécie de “solução final” (Endlösung) tupiniquim em alusão à nefasta e megalomaníaca política do Estado nazista. Com miopia avassaladora, exaltação extrema do individualismo e a segregação social - assim estão sendo traçados os caminhos para a trágica consolidação do nosso Auschwitz à brasileira.
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Referência: Agência Estado. Das 8 seccionais de São Paulo, 7 sob suspeita. São Paulo, 17/06/2007. Disponível em
http://noticias.uol.com.br/ultnot/2007/06/17/ult4469u5486.jhtm .

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