quinta-feira, 20 de março de 2008

ESTRANGEIRO NO MEU PRÓPRIO PAÍS: cenas de subserviência calhorda ou turismo acadêmico inútil?


Para que(m) serve(m) os congressos acadêmicos? Em tese, para o fomento do debate democrático, crítico e atualização dos mais diferentes níveis de informações e dados. Todavia, na minha avaliação, não foi a preocupação destas premissas que foi levada em conta no Regional Science Association International (RSAI) World Congress 2008, realizado na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) entre os dias 17 e 19 de março. Um congresso cujo enfoque básico se assentava nos estudos econômicos regionais.

Fiz todos os trâmites normais pedido pela organização do evento e paguei a taxa de inscrição. No dia 18/03, cheguei ao local do evento para formalizar minha inscrição e pegar o crachá. Fui logo recebido por um sorridente "Hi!" da atendente com jeito e esboço do mote "faça o seu pedido" de uma conhecida cadeia de hambúrgueres transnacional. Após ter resolvido o problema a respeito do meu pagamento da inscrição (grande preocupação por parte dos organizadores!), recebi meu material. Destaco que o mais curioso foi a "caneta ecológica" feita de material reciclável e a sacola com “tecido ecológico” (a ostentação da hipocrisia do “ecologicamente correto”)! Percebi que todo o material impresso estava em inglês sem direito a nenhuma outra linha em português ou qualquer outro idioma. Perguntei a respeito do excesso de estrangeirismo dos livretos para uma moça do pessoal de apoio do evento e fui informado que tudo foi impresso e organizado na língua inglesa uma vez que o evento é "internacional”(!). Argumentei que para qualquer evento de porte “internacional” e com algum respeito trabalharia com duas línguas, uma nativa e outro idioma (que poderia ser eventualmente o inglês). Nada adiantou. Naquele momento, estava mais preocupado com a apresentação do meu trabalho que iria começar em menos de uma hora e resolvi ignorar o fato por alguns instantes. Péssima opção! Prova de que quando aceitamos passivamente a boçalidade o preço posterior sempre será muito alto.

Ao aproximar da sala onde seria minha exposição, fiquei sabendo que somente a língua inglesa poderia ser utilizada. Neste momento, como diz a expressão popular, “caiu a ficha”! De primeira mão, achei que era uma predileção arrogante por parte dos organizadores. Mesmo ainda insistindo em fazer a apresentação em português, fui informado novamente que de fato era imposição o inglês por ser um evento "internacional". Detalhe: não haveria nenhuma forma de tradução. Fiquei perplexo e surpreso com o fato, afinal de contas por mais internacional que seja o evento, estava no meu país da língua de Camões (apesar de nossos milhares de analfabetos)! Argumentei sobre a inverossimilhança da situação para alguns membros da equipe de apoio e todos diziam que somente o inglês era aceito para as apresentações. Indignado, fui levado até o professor que chefiava a organização do evento (que prefiro não citar o nome) e expliquei ao mesmo a situação. Ele com um ar de Pilatos, disse que "as pessoas que participam do evento pagaram para assistir as apresentações em inglês e que isto não seria alterado" e que ele "não poderia fazer nada" (Pensei: FEA-USP Turismo & Cia.?). Cada estrangeiro desembolsou para pagar a inscrição do congresso um valor de 300 euros (!) conforme informações do próprio site oficial do evento. E com sorriso quase de deboche recomendou "faça o que achar que pode"! Uma das promotoras do evento que estava ao nosso lado recomendou que eu "improvisasse" o inglês. Argumentei que não seria possível, uma vez que meu inglês estava mais próximo do ursinho "To Be" e que seria totalmente diferente preparar uma apresentação em português e imediatamente passar para o inglês em questão de minutos (eu não teria esta pirotecnia momentânea!). O mais curioso é que foi justificado pelo fato de não ter nenhuma forma de tradução: "sairia muito caro"!

Para tentar persuadir-me (e me fazer com que eu me sinta um verdadeiro otário diante do meu analfabetismo cultural!), fui informado que fato semelhante ocorreu com alguns outros participantes brasileiros do evento, mas alguns deles “deram um jeitinho” ou “decoraram o texto”. Trocando em miúdos, o que queriam dizer de forma mais educada era que eu era o único “chato” do congresso preocupado com questões tão “tolas”! Para variar, havia argumentado que para um evento internacional era fundamental ter algum tipo de tradutor tal como qualquer evento do gênero. Inútil! Naquele momento me senti em estrangeiro no meu próprio país e proibindo de expressar em minha própria língua materna. Diante dos acontecimentos decidi não apresentar meu trabalho e desisti de participar do evento. Uma das assessoras de comunicação disse que compreendia o meu caso e que passe posteriormente no local de inscrição do evento para pegar o certificado uma vez que eu já tinha pago e tudo estava registrado meu trabalho nos livretos e anais do congressos. A sensação era de um enorme nariz vermelho sobre meu rosto bem ao estilo persona non grata!

Vale destacar a apresentação “cultural” escolhida para os participantes estrangeiros no congresso: a capoeira (manifestação bem típica da capital paulista!). Perguntei se não teria escola de samba com mulheres semi-nuas ou coral de criancinhas pobres de alguma favela das redondezas. Nada era mais caricatural e patético o reforço dos estereótipos preconceituosos da identidade brasileira: mulher (leia-se prostituição), futebol, violência, floresta amazônica e seus indígenas. A fauna cultural brasileira para exportação! Interessante frisar que o mote do congresso não era para ser uma exposição de negócios ou coisas similares, mas um evento acadêmico! (Nunca é demais salientar que nada tenho contra a capoeira e outras manifestações culturais, porém sou contra os reforços ideológicos impregnados de preconceitos e subserviência.)

Para quem conhece um pouco dos corredores da FEA-USP, não é de estranhar o altivo tom imperativo do amor canal com os modelos estadunidenses impregnado de forte ideologia neoliberal. Não retrato um grupo de interesses qualquer dentro da sociedade, mas estou me referindo a uma elite bem-educada e culturalmente bem estruturada e que ajuda a dar as rédeas políticas e econômicas para o restante do país. A questão de qualquer congresso internacional ser falado em um idioma estrangeiro não é nenhuma novidade ou representar algum tipo de problema. Todavia a obrigatoriedade do uso exclusivo de uma língua que não seja a língua nativa onde se realiza o evento é assustadoramente preocupante. As cores ideológicas se avivam neste momento e todas as pessoas de uma hora para outra se tornam falantes (naturais ou não) da língua inglesa em território cuja língua oficial é outra!

“A língua é minha pátria”, já “cantaneava” Caetano Veloso num dos versos de uma de suas canções. As implicações deste fato estão longe de velejarem nas ondas da trivialidade. Qual malefício teria se todos falarem o inglês em terras tupiniquins nos eventos acadêmicos (tendo em vista o ocorrido)? Muitos. A primeiro deles é o descolamento do sentido de nacionalidade. Será que somos nacionalistas apenas nos jogos da seleção brasileira de futebol e quando algum brasileiro é barrado nos aeroportos do chamado Primeiro Mundo? A imposição sistemática do inglês é o castiçal da ideologia neoliberal dominante que prega a globalização com cores do imperialismo cultural estadunidense. Nada é um mero jogo de “cordialidade” dos afáveis e hospitaleiros brasileiros perante os gringos. Nossas raízes paternalistas, escravocratas, subservientes e cartoriais de nossas elites políticas e econômicas emergem como fantasmas parasitando na história da constituição de nossa sociedade.

Segundo ponto se refere aos rumos da universidade pública. Qual é o modelo de universidade pública que realmente estamos construindo? E a pergunta mais crucial: quais modelos queremos construir para a universidade pública para as próximas décadas? Concentrador e parasitário destinado a uma pequena elite mimetizadora das liturgias imperialistas ou democrática e voltada para o pensamento da construção do que Octávio Ianni chamou de “Brasil-Nação”. Quando um evento é patrocinado por uma universidade pública é razoável imaginar que deva ser amplamente aberta a todos os interessados independente de suas particularidades. E o que aconteceu neste evento da RSAI na FEA-USP? Transformou-se num evento privado para um nicho estrangeiro tão reduzido que poucas pessoas não ligadas ao evento perceberam que estava ocorrendo algum tipo de congresso (ainda foi programado justamente no período de recesso das aulas dos estudantes da instituição, ou seja, uma forma de excluí-los de antemão!). O que acredito mover mais a indignação são os eventos que deveriam ser públicos e abertos (tal como não foi o congresso da RSAI) serem ostentados por uma instituição pública nutrida com verbas públicas e que deveria, em tese, se preocupar com a divulgação e dispersão do conhecimento e não segrega-lo sistematicamente.

Terceiro ponto e acredito muito pertinente se refere à questão dos modelos ideológicos impregnados nas universidades. O modelo da FEA-USP é do paraíso telúrico de algum ponto da Suécia ou jardins estadunidenses. Alguém já ouviu falar na “São Paulo of University”? Chegamos ao cúmulo da subserviência tupiniquim ao ler coisas abobalhadas como nome da Universidade de São Paulo traduzida para o inglês, e no evento da RSAI era o que vigorava em todos os cartazes, panfletos e no site oficial do evento. Por sinal, o site do evento, todo redigido na língua inglesa sem nenhuma concessão para outra língua, trazia imagens paradisíacas do Rio de Janeiro induzindo ao visitante das páginas da internet acreditar que São Paulo e Rio de Janeiro possuem os mesmos cenários. Nada contra a capital carioca, todavia é novamente a reafirmação dos estereótipos tão desnecessários para qualquer tipo de evento internacional, principalmente acadêmico. É lamentável que uma das maiores instituições de ensino de Economia da América Latina ao invés de buscar uma identidade particular e de encontro com a realidade brasileira é um mero arquétipo de um modelo impregnado de entulho ideológico do imperialismo cultural estadunidense.

É natural que a produção do saberes não se resume aos prédios e instalações megalomaníacas, mas da capacidade de professores e alunos ser potenciais irradiadores de idéias e conhecimento. Precisamos definir alguns pontos consensuais entre eles é rejeitar o modelo induzido e mimetizador de um estrangeirismo patético e inútil para nossa realidade dentro das universidades brasileiras. Um modelo elitista que pouco colabora para sanear nossas abissais disparidades socioeconômicas. Uma universidade distante da realidade local pouco serve para a sociedade, exceto a manutenção do status quo de uma pequena elite ao custo do erário público. Ao proibir a língua portuguesa num evento dentro de uma universidade pública não é apenas um mero reclame de alguém que se sentiu humilhado perante a situação, mas, sobretudo é o modelo ideológico fascistóide levado a cabo sem nenhuma reflexão crítica ou sequer esteja preocupado com a realidade brasileira (o paradoxo se amplia quando se lembra que justamente o evento trabalhava com as dinâmicas regionais!).

Os sentidos da globalização reinante não é o modelo que privilegia a universalização e promoção do regional, porém é a bota imperialista que esteriliza a diversidade e impõem a colonização cultural com bases estadunidenses como objetivo primaz estendido a todo o globo. Por exemplo, quem definiu a língua inglesa como língua oficial do planeta Terra? Uma coisa é a opção por uma língua ou outra, outro fato completamente diferente é a imposição de uma única língua como o único meio de comunicação perante as pessoas. A minha preocupação em especial são os falsos mitos empurrados goela adentro de milhares de pessoas muito além das fronteiras estadunidenses. A mídia a serviço do grande capital se encarrega alegremente de dispersar na sociedade os entulhos ideológicos em nome da chamada “liberdade de imprensa”.

A pasteurização da cultura é tão perigosa e nociva ao desenvolvimento das diversidades regionais. Desta maneira levamos ao limite a idéia do darwinismo cultural, onde as culturas regionais mais frágeis e os modelos de desenvolvimentos locais são canibalizados pelos ditames dos detentores das rédeas da elite dirigente estadunidense e seus parceiros europeus. A colaboração inter-regional é muito frutífera e deverá sempre ser semeada, todavia a aculturação sem questionamentos ou sem resistências apenas sinaliza a eternidade da mediocridade e a dependência socioeconômica e política. Neste aspecto, a FEA-USP nos deu um belo exemplo de como jamais uma instituição com a envergadura de uma universidade pública tão importante situada em um país com disparidades sociais tão trágicas como a brasileira. A FEA-USP se propôs a fazer um papel tão pobre e subserviente aos estéreis estrangeirismos e se afirmar no posto de patrocinador público do turismo acadêmico inútil.

Ser estrangeiro no meu próprio país é uma sensação que alguma coisa muito estranha perambula na cabeça entulhada de modismos e interesses medíocres e mesquinhos. Estes são alguns dos ingredientes de como jamais deve ser construído as bases de uma verdadeira nação independente e soberana.

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