terça-feira, 25 de março de 2008

A Angústia na Hipermodernidade: Felicidade, Autofagia e Barbárie na Sociedade de Hiperconsumo



A felicidade é uma ilusão? Quase invariavelmente a passagem de Ano Novo, ano após ano, é sempre um espetáculo de mesmices. Um misto de falsas promessas, ilusões alimentadas e mais um bom número de pedidos irrealizáveis. Não é crime nos tornarmos cada vez mais indiferentes ao resto de tudo que não seja aderente ao nosso próprio umbigo. Crime é fazer do egocentrismo a arma fatal contra o outro. Gilles Lipovetsky em, “A felicidade paradoxal” (2007), argumenta que nunca na história do mundo ocidentalizado tivemos tantas oportunidades e acessos a tal felicidade como agora. No entanto, paradoxalmente ainda continuamos infelizes. É pertinente tecermos algumas considerações a esse respeito.

A idéia de hipermodernidade está associada a dois pilares básicos interdependentes, segundo Lipovetsky, o mercado liberal e a democracia burguesa. A hipermodernidade transpõe o intrincado mundo da pós-modernidade fomentando angustias adicionais para o ser humano. Por que não ser feliz na esfera da exuberância material? A resposta poderá estar diretamente ligada à construção do fantástico mundo do consumo de massa e suas frivolidades inerentes. A “civilização do desejo” arquitetada pelas sociedades liberais na segunda metade do século XX, esclarece Lipovetsky, marca o nascedouro de uma nova modernidade. Aparentemente pouca coisa mudou, “continuamos a nos mover na sociedade do supermercado e da publicidade, do automóvel e da televisão”, escreve Lipovetsky ressaltando o diferencial que transformou as normas sociais, a “revolução no consumo”, o “hiperconsumo” e sua unidade hiperindividualista básica, o “hiperconsumidor”.

Do iogurte, passando pelos mais íntimos sentimentos até à política, o mundo foi transformado através da esfera do consumo e do marketing. Consumimos de maneira histriônica toda forma de suvenir que se pode (e o que não se poderia!) colocar entre prateleiras e sobre o balcão: amor, orgasmo, medicamentos, cultura, ecologia, religião, ideologias e ódios. Como sintetiza Lipovestky, uma nova fase do capitalismo, “a sociedade de hiperconsumo coincide com um estado da economia marcado pela centralidade do consumidor” (Lipovetsky, 2007, p. 13). O consumo logo passa da necessidade fundamental de garantiria básica da existência humana para a ansiedade agonística e desesperada do hiperconsumidor.

Uma outra característica pertinente que alicerça nossa sociedade hipermoderna é a amplo apelo ao “descartável” ou “redundante”, e que pode ser conhecido como “refugo”. Zygmunt Bauman (2005) analisa estas construções sociais “líquidas” da pós-modernidade liberal e ocidentalizada. De sentimentos, telefones móveis a indivíduos, o refugo é algo que incomoda os indivíduos e que a sociedade desejar descartar de imediato. A autofagia pelo automatismo é reinante. O “hoje” já passou e queremos logo o “amanhã”. Como na velocidade dos cliques da internet de banda larga, a vida pós-moderna é na hipermodernidade um acontecimento imediatista. Quantas pessoas já não ficaram tensas por meros segundos até abrir uma correspondência por correio eletrônico? Meros segundos que para elas soam como um jazigo eterno!

No hiperconsumo daqueles que anseiam por afetividade, o amor e o gozo são igualmente fúteis e paradoxalmente com inúmeras possibilidades de conhecer “outras pessoas” na intricada cadeia de relacionamentos precários, autofágicos, evasivos e redundante frivolidade. Nunca na história das sociedades ocorreram tantas possibilidades das pessoas se conhecerem e, no entanto, a angústia, depressão e a quantidade de relacionamentos liquefeitos, diluídos e descartados são crescentes. Entendemos aqui a angústia no sentido clássico psicanalítico como forma de uma auto-proteção diante do desconhecido, inevitável ou inesperado na busca de uma sobrevida física e mentalmente (Emanuel, 2005). Erich Fromm descreve que “a experiência da separação desperta a ansiedade; é, de fato, a fonte de toda ansiedade” (Fromm, 1966, p. 26). Do sexo de ontem já saciado perdeu a graça em poucas horas é será trocado pela busca de outros genitais no dia seguinte. A angústia cresce de maneira desmesurada na ânsia de obter o idílico “par perfeito”. O descarte da parceria é logo feito quando já foi preenchido o gozo imediato. Os rótulos e os mitos da “parceria ideal” são deflagrados desde os bares de hordas pansexuais de lobos e lobas famintos na “caçada” aos sítios pagos de relacionamentos em meios eletrônicos. Desta maneira “[...] numa sociedade de caçadores, a expectativa do fim da caçada não é tentadora, mas apavorante – já que esse fim só pode chegar na forma da derrota e a exclusão pessoais” (Bauman, 2007, p. 112). A ansiedade é desencadeada pelo hiperconsumo de prazeres egocêntricos na multidão de gozos possíveis. Quando “os corpos são livres, a miséria sexual é persistente” (Lipovetsky, 2007, p. 17), o desejo nunca é saciado e o resultado dramático é a angústia. Consequentemente ocorre à depressão pelo vazio incomensurável e pela oferta frívola de relacionamentos fúteis e, em seguida, logo à tona a decepção. Quando o amor se reduz à um mero consumo de iogurtes light ou diet, o resultado é o eterno retorno ao vazio existencial jamais saciado e que ronda os medos mais profundos do seres humanos em sociedade. É um eterno recriar de uma ingênua ilusão autofágica da felicidade pela quantidade hiperconsumidora de parceiros. Na análise pertinente de Fromm, “numa cultura que prevalece a orientação mercantil, e em que o sucesso material é o valor predominante, pouca razão há para a surpresa no fato de seguirem as relações do amor humano os mesmos padrões de troca que governam os mercados de utilidades e trabalho” (Fromm, 1966, p. 21).

A sociedade de hiperconsumo desagrega as culturas de classe e promove a homogeneização do que Lipovetsky chama de “modelo consumista-emocional-individualista” para todos os segmentos etários. O hiperconsumo abarrotou as possibilidades das sociedades parirem e cuidarem de suas próprias crianças sem que elas não se transformem em futuros adultos hiperconsumidores dependentes químicos ou com profundas carências psicanalíticas. Na medida em que o consumo segmenta cada vez mais faixas etárias, excetuando as crianças na primeira infância, não existe mais exclusão dentro do fantástico universo do hiperconsumo. Fomentado a quintessência do consumo, as escolas de orientação mercantil promovem com algum estofamento cultural os futuros alunos hiperconsumidores. Por sua vez, os pais hiperconsumidores não querem mais ser responsáveis em solitude pela criação dos filhos e delegam à própria prole a divisão da educação. Em nome de uma equivocada retórica de “responsabilidade não-autoritária”, os pais “legais, bonzinhos e bacanas” estimulam seus filhos ao consumo e fazem deles os próprios hiperconsumidores. Movidas por um espetáculo da publicidade infanto-juvenil, crianças como “pequenos imperadores” ditam as regras para os pais do que comprar e decidem pelas suas mercadorias fazendo suas próprias escolhas. Logo, saciado o desejo imediato do “imperador-mirim”, os pais “compram a paz” e se deliciam momentaneamente na felicidade promovida pela indústria da diversão infanto-juvenil. Desta maneira, os pais procuram o auto-perdão por longas ausências ou negligencias sentimentais perante a prole, ao mesmo tempo em que acreditam cederem “pedagogicamente” um direito ao filho à felicidade, aos prazeres e ao individualismo narcisista.

Existe felicidade no trabalho? O “refugo humano” é um conceito mais profundo. O uso e o descarte de pessoas atiradas ao lixo. Os mundos do trabalho pós-fordista se constituíram numa miríade de ilações a respeito das estruturas trabalhistas. A informalidade em nome da “eficiência” neoliberal produziu variantes do emprego que podemos classificar em: o super-emprego, o subemprego, desempregado e a escória. O super-emprego é aquele onde o quadro de pessoal é “enxuto” em nome do pomposo da “reengenharia” (ou algum outro rótulo de falácias administrativas) e o trabalhador que sobrou ao expurgo é segregado a uma série de tarefas alucinadas e sobrecarregadas bem ao estilo “tudo-ao-mesmo-tempo-agora”. O subemprego se situa na marginalidade (geralmente é refém da “flexibilização do emprego”), pode ser o empregado que não tem segurado suas garantias trabalhistas da economia formal ou trabalhador de rua (ou seja, o popular “camelô”). O desempregado é aquele trabalhador pendular atemporal onde, em poucas semanas, ora alguma exercendo alguma ocupação com mínima renda, ora esta na busca interminável por emprego. A escória, essa massa amorfa e sem vida perante o mercado, é o descarte de pessoas que definitivamente não entrarão mais no mercado de trabalho, seja formal ou não. Para a maioria dos trabalhadores assalariados, a felicidade pelo emprego se tornou a mero alívio de alguma renda no final do mês. A felicidade faz a transubstanciação por um mero pedaço de pão diário e existem aqueles que “agradecem aos Céus” por isto! A maioria dos que se alimenta até enfartarem tem ojeriza os que nada tem para comer. A pobreza incomoda a paisagem e “suja” as cidades. Logo existe um alívio de felicidade quando moradores de rua, integrantes da escória, são banidos como cães das áreas nobres das grandes cidades. A felicidade burguesa é egocêntrica, esteriliza as ruas nobres eliminando a qualquer custo o refugo humano e pode desfilar com credenciais pitorescas de mercadorias de desmedido luxo alienado.

O hiperconsumo é um espetáculo do conforto. Aos que possuem poder aquisitivo pode consumir segurança e luxo descartáveis em ruas que são verdadeiros “bunkers de paz” em meio à dispersão da violência. O templo da felicidade do hiperconsumo de massa, o “shopping center” é o retrato da negação da cidade e dá a sensação de segurança e felicidade das compras com tranqüilidade. O consumo não é apenas uma amálgama entre necessidade e disponibilidade, mas comprar evasivamente se tornou um ato de prazer com características sexuais (em referência ao gozo freudiano). A felicidade diante de uma compra abstrata e utilidade pífia realçam as características de ansiedade do hiperconsumidor. O desejo de comprar cada vez mais torna o consumo como um ato de felicidade propriamente dita. O marketing de massa sabe exatamente destas características dos consumidores e exploram a exaustão o viés da angústia e o desejo pelo fetiche da mercadoria através da pasteurização e homogeneização das necessidades humanas: “Você precisa experimentar o produto “A”, porque “A” vai fazer sua vida mais feliz!”. Dessa maneira, a “felicidade instantânea” se configura em um autômato saciar da necessidade passageira e, por sua vez, a publicidade capta tão eloquentemente suas matrizes do adornamento da mercadoria como objeto simbólico constituinte de uma miríade de desejos consumistas. Assim que o desejo da aquisição for concretizado via cartão de crédito ou débito automático, uma nova carência surgirá e renovará todo o processo de angustia pela saciedade do consumo. O livre mercado não prioriza o que produzir ou vender, mas somente o que vai dar lucro e ponto final. Existem inúmeras retóricas politicamente correta a respeito da “responsabilidade social” das empresas, mas ninguém questiona, por exemplo, para situar alguns segmentos, qual a “responsabilidade social” dos fabricantes de armas, cigarros, bebidas alcoólicas, agrotóxicos e pesticidas, publicidade e empresas de agiotagem profissional de “micro-crédito”? Ainda existem os que defendem o uso maciço do hiperconsumo para garantir os famigerados “postos de trabalho”, mas nunca especificam as suas margens de lucros das empresas que ganham com os louros da mais-valia. A felicidade pelos lucros independe da desgraça alheia, afinal, para os arautos do neoliberalismo, a verdadeira “responsabilidade social” é do Estado, o resto é a vantajosa dedução dos “custos sociais” no imposto de renda de “pessoa jurídica”.

O hiperconsumo não poupa nem mesmo a religião que se transformou num nos espetáculos de dispersão cultural e socioeconômico mais evidente na era da globalização. Não é apenas a avidez pelo bem-estar material buscada ansiosamente pelo hiperconsumidor, “mas ele aparece como um solicitante exponencial do conforto psíquico, de harmonia interior, cujas técnicas do desenvolvimento pessoal são disso fundamentais testemunhas do desenvolvimento de um mercado da alma” (Ewald e Soares, 2007, p. 25). Na atual safra de seres humanos, o niilismo da fé é o paradoxo da busca frenética por Deus. Agora, não mais para a redenção contra os maus agouros do destino, mas somente o alívio das satisfações das emoções imediatas. Os templos da fé proliferam em todos os segmentos da sociedade prometendo a tal “cura espiritual” e todos os sortilégios da alma mediante a crença em Deus e o pagamento de dízimos religiosamente. Uma série de outras crenças, com ênfase nas religiões orientais, abarrota um leque de diversas opções para aqueles que carecem ansiosamente de “fé espiritual”, e que sua vez, nunca saciadas definitivamente pelo consumo materialista. Não é a toa que toda a depauperada literatura de “auto-ajuda” se consolidou como uma metástase dentro das livrarias e gerando grande parte dos lucros das editoras.

Não há ilusões perante a felicidade fabricada e preconizada pela sociedade de hiperconsumo. O homem hiperconsumidor possui um atávico niilismo existencial e devoto acirrado das veleidades do marketing de massa. Do morador de algum barraco em algum vilarejo de pau-a-pique aos sedutores palacetes da burguesia paulistana da região dos Jardins, todos são seduzidos pelo hiperconsumo com abissais poderes de compra. A vida na hipermoderna se tornou um fantástico mundo da aquisição de bens materiais, psicológicas, sexuais e sentimentais. É importante ressaltar os questionamentos de Erich Fromm quanto às supostas certezas de “mentalidade sadias” tão alardeadas orgulhosamente pelas sociedades ocidentalizadas: “Podemos estar tão seguros de que não nos estamos iludindo?” (Fromm, 1974, p. 17).Na hipermodernidade, a felicidade se realiza como mera ilusão e não será possível ser duradoura, mas apenas saciada momentaneamente a espera de uma nova e feliz aquisição mercantil mediado pelo hiperconsumo. Neste caminho da segregação entre os que consomem e os que assistem de barrigas vazias os outros consumirem, abrem-se lastros torrenciais para a escala sem precedentes de uma autofágica sociedade rumo à barbárie.



Referências bibliográficas

1. Bauman, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

2. Bauman, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

3. Fromm, Erich. A arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia, 5ª. Ed, 1966.

Fromm, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 7ª. Ed., 1974.

4. Emanuel, Ricky. Angústia. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Ediouro; São Paulo: Segmento-Duetto, 2005.

5. Ewald, Ariane Patrícia e Soares, Jorge Coelho. Identidade e subjetividade numa era de incerteza. Estudos de Psicologia, 12(1), 23-30, 2007.

6. Lipovetsky, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Um comentário:

Anônimo disse...

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