quinta-feira, 24 de julho de 2008

Os Limites da Perversão Humana: Pornografia, Internet e Impunidade


Quarta-feira à noite, recebo um telefonema de um amigo e pergunta se estou conectado à rede. Digo que sim. Ele envia um link que nitidamente indicava ser de um site de pornografia e com a mensagem: Apenas abra! A página é lentamente carregada e surgem as fotos. Ao olhar o rosto claramente dopado da garota em poses extravagantemente pornográfica, vejo imediatamente que a suposta “atriz” do “ensaio fotográfico” era uma colega nossa da época do Instituto de Física (IF-USP). Pergunto ao meu velho amigo do IF-USP de onde ele achou “aquilo” e a resposta dele foi lacônica: “Na rede, oras!”.


Qual origem destas fotos? A questão se remete há alguns anos atrás, onde esta colega foi fotografada em poses pornográficas e boa parte da faculdade “à boca pequena” ficou sabendo. As imagens da garota circulam velozmente anexas nas mensagens de correio eletrônico. Pelo que fiquei sabendo à época, após a divulgação das suas imagens, ela simplesmente desapareceu do curso. Desnecessário dizer que os motivos são claramente óbvios. Causa estranheza que as mesmas fotos de tempos atrás, agora reaparecem em tamanho maior e com seus nuances hospedadas num site de pornografia. Dessa maneira, o que circulavam informalmente nos e-mails de anos atrás, se tornou hoje mais uma atração turística do site. A pergunta é muito clara: como estas “coisas” podem acontecer?


Assim como quase sempre 2 e 2 são 4, é de notório saber que a rede mundial de computadores é um fluxo contínuo de informações das mais variadas fontes. Não existe uma clara definição entre o que é conhecimento, informação ou simplesmente futilidade e crime. No caso destas fotos citadas, por detrás da suposta “atriz pornô”, havia uma garota muito simpática e tímida. Na época, tive a oportunidade de cursar uma disciplina na mesma sala dela. Não tínhamos praticamente nenhum contato direto, mas acredito que não era uma garota aderente às badalações e festinhas do cabide. Muitas vezes, namorados, “ficantes” de um ou meia-dúzia de dias, parceiros estáveis ou mesmo maridos, conduzem sua parceira às cenas de nudez ou sexo explícito documentadas via imagens ou filmes. Não raro o acompanhamento de bebidas alcoólicas e também drogas. Neste ritual de orgia íntima e suposta sensualidade, o parceiro aproveita oportunidade para destilar seu voyeurismo midiático. Os resultados são cada vez mais crescentes os casos de mulheres comuns em posições eróticas ou simplesmente pornográficas expostas gratuitamente na internet. Para as vítimas desta modalidade de crime, os prejuízos psicológicos, morais e materiais são incalculáveis.


A intimidade do “cidadão comum” desvelada pela rede mundial de computadores registra um perfil de agressão moral onde quase sempre passa despercebido das autoridades policiais. Os casos que realmente chamam mais a atenção são os derivados da pedofilia, combatidos com mais veemência e ocasionalmente derivam prisões dos seus criminosos. É importante buscar compreender o perfil deste tipo de criminoso da alcova e suas práticas.


Muitas vezes, um simples “choppinho” pode render muitas dores de cabeça além da obviedade. Um barzinho, sorrisos, a troca de olhares típicos dos galanteadores de rodeio conduzem suas vítimas cerceadas a um jogo de sedução onde invariavelmente terminam no leito de alguma cama. Se misturar alguns copos de bebida alcoólica (e muitas vezes, alguma droga “leve” como o cigarro da “social” maconha), já é possível criar um clima de despojamento e intimidade entre a vítima e o criminoso. Neste momento de suposta sedução, o criminoso pede para a vítima se “soltar mais” e começa o festival de cliques ou mesmo filmagens longe das lentes hollywoodianas. O exibicionismo é uma navalha de fino corte. Celulares sofisticados com câmeras cada vez menores e recursos mais potentes são ótimos instrumentais deste tipo de crime. Quando a vítima se recupera da ressaca, perceberá que a dor-de-cabeça só estará começando ao descobrir que naquela noite o homem que a levou para a cama despejou toda a sua privacidade na internet. Casos também ocorrem com os parceiros muito bem conhecidos da vítima e podem também resultar em coação ou chantagem por parte do criminoso.


Não existem limites para a perversão. O que acredito ser o modus operandi psicológico mais comum deste tipo de delito descrito até aqui é a perversão sádica atrelado a um profundo menosprezo da condição da vida humana. Neste caso, entendo que é possível encontrar as raízes das ações regatando alguns elementos da Psicanálise no que tange ao estudo das perversões.


A palavra perversão deriva do verbo latino
pervertere e significa tornar-se perverso, corromper, desmoralizar, depravar. Seu emprego não é privilégio da Psicanálise, sendo também empregado no campo da Psiquiatria e Sexologia, ora de maneira pejorativa ora valorizando-as, para designar as práticas sexuais consideradas como desvios em relação à norma social.


Segundo a análise de Sigmund Freud, existem dois tipos de perversões: as
perversões do objeto e as perversões do alvo. As perversões do objeto foram por ele definidas como uma fixação num único objeto em detrimento dos demais. Logo, incluiu nestas as relações sexuais com um parceiro humano (auto-erotismo, incesto, homossexualidade e pedofilia) e as relações sexuais com um objeto não humano (zoofilia, fetichismo, travestismo). Nas perversões do alvo, distinguiu três espécies de práticas: o prazer visual (exibicionismo), o prazer de sofrer ou fazer sofrer (sadismo e masoquismo) e o prazer pela superestimação exclusiva de uma zona erógena: ou da boca ou do aparelho genital.


Uma sociedade, por mais hipócrita que seja na sua essência, é definida em sua aparência por um conjunto de normas, regras e condutas sociais. Uma sociedade castradora condiciona privadamente que seus elementos constituintes libertem suas pulsões sexuais de alguma maneira e sob algum aspecto. O voyeurismo contido nos milhares de páginas de sites de “relacionamentos” ou “comunidades” ao estilo do popular Orkut na internet é uma pequena amostra da associação entre imagens e ego. A exibição sumária do corpo, pedaços de intimidade ou insinuações fetichistas e sua exposição ao público denotam uma mercantilização da condição humana. Neste campo minado que é a construção do desejo e libido, são elementos que permitem externalizar ou internalizar as pulsões sexuais. O ato de exibir as imagens da vítima é uma forma do criminoso recuperar e externalizar sua função do falo, e sob este aspecto, projetar seu “poder erógeno” por todas as conexões de rede do planeta.


A hipersexualidade digitalizada constitui um parâmetro a ser estudado nas interações provenientes das pulsões sexuais. Por mais que seja difícil a detecção da autoria dos crimes sexuais que movimentam as conexões de rede, é importante ressaltar que o aparelho jurídico também precisa melhor se preparar para coibir e punir práticas criminosas que afrontam moralmente a dignidade da vida humana. Os proprietários de sites de hospedagens onde são armazenadas as imagens das vítimas também precisam ser responsabilizados como co-autores destes crimes quando não fiscalizam, tardam ou impedem a retirada do material criminoso de seus computadores. A hiperexposição sexual da vítima nos meios eletrônicos deve se entendida como um crime tão pernicioso quanto os praticados no campo da pedofilia e demais crimes da rede mundial de computadores.


Os crimes silenciosos praticados na alcova de lares, motéis e lugares ermos são os mais difíceis de serem desvelados. Muitas vezes, mesmo sabendo da autoria do crime, a vítima por medo, receio ou vergonha não presta queixa contra o agressor. Os crimes de agressão física não diferem dos crimes de exposição digital das intimidades de sua vítima. Neste caso, a perversão compactua com a impunidade resultando assim um terreno tranqüilo e fértil para a condução silenciosa deste tipo barbárie criminosa.


Enquanto quase todas as discussões sobre crimes digitais estão na esfera da retórica, as fotos íntimas da colega do IF-USP continuam livremente correndo soltas através das várias conexões da rede mundial. E quem sabe, no caso específico desta garota, possa servir de alerta para algumas mulheres pesquisarem muito bem quem é postulante à galã da alcova de seus devaneios amorosos antes de tirarem a primeira peça íntima do corpo. Claro que a vítima não tem culpa de ser vítima, infelizmente a cautela ainda é um presságio para uma vida sem correr os riscos de um inadvertido voyeurismo digitalizado.


(É importante ressaltar que se conselho rendesse realmente algum dividendo, o autor deste blog já teria sido, há muito tempo atrás, sócio majoritário da Microsoft!)