quarta-feira, 19 de setembro de 2007
A indifereça diante da barbárie
O jornal estadunidense, The New York Times divulgou matéria a respeito da recuperação de fotos que data da Segunda Grande Guerra, em 1944, e que serão exibidas no Museu do Holocausto, situado nos Estados Unidos. Num total de 116 imagens inéditas do grande público, é possível notar os belos e risonhos semblantes dos oficiais da SS nazista, a elite das tropas de Adolf Hitler, que descrevem um cotidiano pouco usual de lazer, descontração e informalidade em pleno campo de extermíno de Auschwitz. ( A matéria poderá ser acessada em sua versão em português disponível no sítio da UOL clicando aqui.)
Segundo o jornal de Nova Iorque: "Em vez de mostrar os homens desempenhando suas tarefas no campo de concentração, as fotos retratavam, entre outras coisas, um grupo de homens da SS cantando alegremente, acompanhado de um acordeão; Hocker acendendo a árvore de Natal do campo, jovens mulheres da SS brincando alegremente e oficiais relaxando, alguns sem suas vestes, fumando um cigarro". A barbárie poderá ser vista nitidamente nessas imagens, Auschwitz como um teatro de operações cuja execução de suas tarefas desenvolvidas no dia-a-dia trouxeram um grande e sádico prazer para os exterminadores nazistas.
O contraponto da barbárie se caracteriza pelo ambiente de conforto e aparente tranquilidade dos homens de Hitler em detrimento dos horrores implementados dentro do campo onde prisioneiros do regime estavam sofrendo todo um sortilégio de desgraça faustiana: fome, trabalhos forçados, maus tratos e doenças. Morrem cerca de 1,1 milhões de pessoas sob as mais macabras e fúnebres formas em Auschwitz. Tudo para satisfazer a aventura megalomaníaca de Hitler e seus comandantes nazistas para os esforço para dominar o mundo e "purificar raça ariana", culminando no extermíno de milhares de judeus, ciganos, inimigos do regime e outras etnias.
Com o término da guerra e a derrota de Hitler para os Aliados, Auschwitz foi liberado pelas forças soviéticas no dia 27 de janeiro, abandonado e evacuado no dia 18 de janeiro de 1945.
segunda-feira, 10 de setembro de 2007
A guerra civil fluminense: violência, narcotráfico e a falência do Estado
Cachorro latindo
Criança chorando
Vagabundo vazando
É o Bope chegando
Tropa de elite, osso duro de roer
Pega um, pega geral, também vai pegar você
(Versos cantados pelos policiais do Bope durante os exercícios físicos e divulgado como "hit" em vários sites da internet como o YouTube)
1. A barbárie sem limites
Qual o limite entre a civilização e a barbárie? No Brasil das desigualdades enraizadas, imerso nos rincões mais inóspitos dos centros econômicos regionais e locais com a proliferação das favelas jogadas à sua própria sorte. O limite há muito tempo já foi ultrapassado. A estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU) de que, em 2020, haverá cerca de 1,4 bilhão de pessoas morando em favelas em todo o mundo, das quais 162 milhões na América Latina e no Caribe (as áreas mais alarmantes se encontram na região da África Subsaariana). Segundo a Agência Brasil, o Brasil conquista atualmente uma liderança negativa "em termos de habitação precária na região latino-americana e caribenha é exercida pelo Brasil, onde cerca de 52,3 milhões residem em favelas, de acordo com dados do UN-Habitat, programa da Organização das Nações Unidas (ONU) para assentamentos humanos. Cerca de 90% do déficit habitacional brasileiro, estimado em 7 milhões de moradias está concentrado na população que recebe até três salários mínimos por mês"(1).
O fenômeno brasileiro da "favelização" tem origem no final do século XIX. Durante a primeira década do século XX, as favelas começam a se desenvolver, principalmente depois da abolição da escravatura e cujo processo foi deflagrado sem numa integração socioeconômica os escravos libertados. É alto o grau de imprecisão sobre o número exato de favelas no Rio de Janeiro, incluindo-se neste quesito a própria indefinição consensual do conceito de "favela". Em 2003, a UN-Habitat produziu o mais recente relatório global sobre assentamentos humanos, “The Challenger of Slums”. O documento classificava o termo inglês “slums” em quarto tipos de assentamentos para o caso brasileiro: favela, loteamento, invasões e cortiços (2).
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou dados de 518 favelas enquanto o Instituto Pereira Passos (IPP), órgão da Prefeitura do Rio de Janeiro, trabalha com um número ao redor de 750. Terror, sangue e tráfico são os componentes explosivos que encarceram milhares de brasileiros sitiados dentro de nichos de sua própria nação. Não é possível generalizar pejorativamente as favelas brasileiras como um refúgio exclusivo de criminosos, mas um espaço deletério da vida social de milhares de brasileiros sem abrigo no asfalto e sem esperança no futuro. Hoje, a violência urbana é a uma enfermidade coletiva que merece ser tratada como epidemia social das mais alarmantes. O caso do Rio de Janeiro merece um particular destaque.
2.“Quem poupa o lobo, sacrifica a ovelha”
A edição não-oficial do filme, “Tropa de Elite” (2007), dirigido por José Padilha, contempla um esboço da guerra civil travada nos morros no Rio de Janeiro. Sem retoques e com muita acidez, o drama focaliza a violência da "Cidade Maravilhosa" solapada pelas rajadas macabras de metralhadoras a partir da visão de três policiais do BOPE, Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro. Em tese, o BOPE é um batalhão pertencente ao conjunto da Polícia Militar, mas na prática, é um destacamento autônomo, ou seja, a “tropa de elite”, responsável pelas operações de alto risco as quais a “polícia convencional” não consegue resolver. No filme, Padilha traça um retrato bastante do cotidiano da polícia, como sendo um trabalho que mistura um certo heroísmo, corrupção, assassinato e tortura. O clima presente é de uma guerra declarada entre policiais e traficantes, os chamados “comandos”, cuja paz sempre instável entre os dois lados é movida à corrupção. A rigor, não existem heróis ou bandidos na apocalíptica guerra travada pelos pontos de drogas no Rio de Janeiro, onde os códigos babilônicos soam muito mais alto que os códigos jurídicos do Estado de Direito: olho por olho ou “chumbo por chumbo”, é assim que se constrói a barbárie cotidiana presente nos morros fluminenses.
"Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamentos ou punições cruéis, desumanas ou degradantes" é o que destaca o artigo 5o. da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948. Para a maioria das polícias, tal artigo não passa de uma grande "bobagem dos Direitos Humanos". Em sites como o YouTube é possível encontrar vídeos caseiro de apologia do trabalho do BOPE. Os vídeos, sem uma clara identificação de seus autores, são sempre regados a muita violência explícita e ostentação de fartos armamentos de alto poder de destruição e, quase sempre, exclusivos das forças armadas. A parábola atribuída a Victor Hugo, "quem poupa o lobo, sacrifica a ovelha" é constante nos vídeos divulgados. Um verdadeiro espetáculo circense onde alguns "admiradores" da repressão policial procuram fazer deliberadamente uma demonstração de força tal como às facções do crime organizado costumam se auto-rotularem na rede mundial de computadores. Uma guerrilha eletrônica acéfala, explosiva e completamente inútil.
Interessante analisar os métodos empregados pelo o BOPE tanto na ação dentro das favelas, quanto o processo de treinamento de seus soldados. O filme de Padilha refaz com bastante precisão a insanidade métodos usados pelo BOPE. Enquanto o apodrecido Estado fluminense não ainda sofre intervenção federal (o que na prática ocorreu somente durante os Jogos Pan-americanos), a população dos morros e adjacências é empurrada para o campo de batalha e se transformando em verdadeiros alvos vivos. A polícia convencional, como agente do Estado, está igualmente falida, logo, cabe então ao BOPE realizar o trabalho “heróico” de subida dos morros, apreensão de drogas, armas e desmantelamento de quadrilhas de traficantes. Tudo muito lindo, maravilhoso e cinematográfico! Os “Rambos de preto” uniformizados em nome da suposta lei é o que resta de poder do Estado para buscar combater o tráfico. Como soldados de um Estado esfacelado e corrupto, os homens do BOPE fazem suas próprias leis e julgamentos como uma própria seita. Nos treinamentos, tanto no filme como nos vídeos divulgados na internet, enquanto fazem uma série de exercícios físicos e técnicos, os candidatos a ingressarem no BOPE entoam alienadamente hinos da tropa que traduzem o “espírito do grupo”: "Homem de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar corpo no chão. Homem de preto, o que é que você faz? Eu faço coisas que assustam o satanás!".
Uma característica absurdamente notável do BOPE são os carros blindados que sobe os morros e resistentes até mesmo a tiros de fuzil AR-15. O veículo blindado é convencionalmente chamado de "Pacificador", mas é mais conhecido pela população do morro como "Caveirão". A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) defende o uso do veículo em "operações policiais especiais" nos locais onde há maiores dificuldades da polícia no conflito com traficantes. Estima-se que as Polícias Civil e Militar já contam com oito viaturas desse tipo, sendo uma da Polícia Civil e as demais da Polícia Militar. Não há armas de fogo acopladas ao Caveirão e são levadas pelas equipes de apoio terrestre. Segundo a estratégia policial, o veículo tem como função romper barreiras físicas impostas pelos traficantes em seus "territórios", sendo ainda utilizado no resgate de feridos em confrontos. Entretanto, a chegada do Caveirão no morro é um sinal de desespero para a população que busca abrigo entre o tiroteio de guerrilha entre policiais e traficantes, assim como sentencia um dos “hits” do BOPE em sites da internet: "O BOPE vai te pegar!".
Pior que na Bósnia ou Haiti, a guerra civil no Rio de Janeiro vem contabilizando saldos de mortos que batem absurdos recordes. Diante da falência do Estado de Direito, a guerra é inevitável. O clima onipresente da violência tendo ponto principal a disputa pelo bilionário comércio das drogas. O conflito generalizado entre traficantes com táticas de guerrilha, mercenários com distintivos de policiais (as chamadas “milícias”, ou seja, um segmento da “banda podre” das polícias e inicialmente foram desastradamente incentivados pelo governo do Rio de Janeiro) ocupando morros e a agressividade da atuação policial para “matar com eficiência e dignidade”. A instável Paz entre os protagonistas dos combates são mediados pela farta distribuição de propina entre os elos da cadeia dos agentes dessa guerra. Na mira de tiro está à população pobre dos morros, marginalizada, estigmatiza e indefesa.
Cabe ainda a pergunta aos comandantes da elite da polícia fluminense e ao seu chefe maior, o governador: quem foi adestrado para matar é capaz de arregimentar a Paz?
3."Eu vou pegar a sua alma"
O caso do BOPE é emblemático. Uma tropa movida a uma precisão invejável para banhar os morros cariocas com violência e sangue seja ele de qual for a sua natureza. A oferta e demanda são as premissas básicas da economia de qualquer negócio dentro do mundo capitalista e o bilionário comércio regido pelo narcotráfico não é diferente. No asfalto, a classes abastadas dos bairros ditos como “nobres” são os mercadores consumidores de todo e qualquer sortilégio de drogas. Os filhos da burguesia fluminense e seus vorazes narizes irrequietos são retratados com fortes cores sociais no filme de Padilha. O patrocínio do tráfico pelos “burguesinhos” é apontado como a causa crucial de criminalidade e motivador da violência. Certamente, não é apenas o dinheiro da alucinógena burguesia fluminense que injeta violência para dentro e fora dos morros, mas uma cultura permanente de corrupção e impunidade onde o “jeitinho brasileiro” é escanc escandaradamente "os morros, mas uma cultura permanente de corrupçitos as e traficantes. Tudo muito lindo e maravilhoso se aradamente praticado.
Um documento divulgado em conjunto por três ONGs que trabalham com Direitos Humanos (a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, a Justiça Global Brasil e a Anistia Internacional), faz uma campanha contra o uso do carro blindado, o Caveirão, nas incursões policiais dentro das favelas fluminenses: "Nas operações realizadas pelo caveirão, a polícia faz ameaças psicológicas e físicas aos moradores, com o intuito de intimidar as comunidades como um todo. O emblema do BOPE – uma caveira empalada numa espada sobre duas pistolas douradas – envia uma mensagem forte e inequívoca: o emblema simboliza o combate armado, a guerra e a morte" (3).
A linguagem tratada pelos auto-falantes na parte externa dos carros blindados que anuncia a chegada da política é ecoada em um ritmo que beira à uma macabra procissão. No entanto, parece não pairar dúvidas a respeito da tarefa dessa polícia descontrolada: subir o morro para impor o medo, intimidação, coerção, tortura e atirar quem se encontra pela frente fazendo justiça no meio da rua: “Crianças, saiam da rua, vai haver tiroteio” ou de forma mais ameaçadora: “Se você deve, eu vou pegar a sua alma”. Quando o caveirão se aproxima de alguém na rua, a polícia grita pelo megafone: “Ei, você aí! Você é suspeito. Ande bem devagar, levante a blusa, vire... agora pode ir...” (4).
Em outro trecho diz ainda o documento das ONGs: "A adoção dessa política de segurança pública que combate a violência com violência, utilizando uma estratégia de confrontação e intimidação, pouco colabora para a segurança dos policiais, que têm morrido muito mais fora das operações policiais, no chamado “bico” ou em episódios de vingança. [...] A polícia tem o direito legítimo de se proteger enquanto trabalha. Mas também tem o dever de proteger as comunidades que está servindo. O policiamento agressivo tem resultado em grande sofrimento para as comunidades pobres do Rio, bem como sua perda de confiança na capacidade do estado de manter e garantir a segurança." (5)
4. A falência do Poder Público
O banho de sangue produzido a cada investida policial nos morros fluminenses é um tétrico espetáculo da violência no seu estágio mais primitivo. O paradoxo desse sistema de execução permanente de pessoas a exaustão é contido quando existe um pacto selado pela propina que muitos policiais civis e militares (a chamada "banda podre") recebem do tráfico, o "arrego", selando inescrupulosamente a conivência do Poder Público e todo o arsenal de contravenções que o dinheiro das drogas pode corromper. Além dos vastíssimos lucros provenientes do tráfico, a "banda podre" das polícias também mantêm seus negócios em outros segmentos num lucrativo comércio que combina desde exploração de bailes funk e seus “proibidões” à roubo de carga, passando pelo jogo do bicho e seqüestros. Praticamente, em todos os ramos do crime organizado, há necessariamente a conivência e participação de policiais de forma direta ou indiretamente. A péssima remuneração dos agentes policiais é mais um grande atrativo para que a propina e o negócio ilícito possam ser mais cativantes do que seu trabalho de agente público. Segundo o cientista político, Paulo Sérgio Pinheiro e Guilherme A. Almeida: "A violência urbana subverte e desvirtua a função das cidades, drena recursos públicos já escassos, ceifa vidas -- especialmente as dos jovens e dos mais pobres--, dilacera famílias, modificando nossas existências dramaticamente para pior. De potenciais cidadãos, passamos a ser consumidores do medo" (6).
A complexidade do caos social não é exclusividade do Rio de Janeiro, porém é neste Estado ocorre a mais latente corrosão do Poder Público. O maremoto de violência não poupa ninguém e captura cada vez mais jovens e crianças para as fileiras do narcotráfico. Traficantes cada vez mais jovens e violentos dominam as "bocas de fumo" com uso de arsenal cada vez mais pesado com alto poder de fogo. No entanto, nenhuma novidade que não seja de conhecimento público. A questão pertinente é a completa letargia da corrupta elite da política carioca que se nutre da desgraça produzida pelas favelas mergulhadas na violência do tráfico para patrocinar suas campanhas eleitoreiras, além de cultivar interesses medíocres e mesquinhos.
5. “Imperialismo brando” e a desarticulação da sociedade sob a égide neoliberal
As privatizações das ações sociais retratam a desarticulação e enfraquecimento do Estado sob os auspícios das políticas neoliberais e enfraquecimento das práticas e ações dos grupos de esquerda. No vácuo da ausência de uma teia de proteção social do Estado, foi se erguendo um arquipélago de organizações não-governamentais (ONGs) cuja idoneidade é de difícil aferição, invadiram os morros em supostas práticas humanitárias. Sempre com o olhar atento do chefe do tráfico da região, em teoria, essas ONGs procuram fazer o trabalho social que o Estado deveria fazer e decididamente renunciou ao seu dever. Existe uma estreita correlação entre ONGs internacionalizadas no Terceiro Mundo, privatização dos serviços públicos e os empréstimos do Banco Mundial. Em sua rápida passagem pelo Banco Mundial, o Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, chamou de “pós-Consenso de Washington” essas estreitas relações de supostos grupos de ajuda humanitária e interesses de corporações financeiras. Tais práticas também foram denominadas como “imperialismo brando” (7).
A cultura da barbárie predomina quando mescla indecifravelmente o permitido e o ilícito. Não é possível saber com precisão a distinção entre o "certo" e o "errado". Num mundo batizado pela barbárie, a ética é a primeira vítima de bala perdida. Crianças que empunham fuzis e protegem guetos do comércio de drogas é um dos bizarros espetáculos que o injusto e falido Estado brasileiro proporciona ao mundo. Uma juventude paupérrima e sem saída ceifada nos campos de concentração do narcotráfico cujo único destino é quase invariavelmente o cemitério. Que futuro existe para um jovem pobre sem a menor perspectiva e tenta se equilibrar entre a violência dos "comandos" e a polícia?
A pobreza não gera necessariamente violência, mas degradação. A luta irracional pela sobrevivência transforma homens, mulheres, adolescentes e até mesmo crianças em canibais na insana guerra de todos contra todos e abençoada pela corrupção de policiais e políticos. A indiferença, a inércia e a incompetência política aliada visceralmente com a impunidade e a corrupção de diversas esferas do Poder Público reproduzem dramaticamente toda a hecatombe social parido pela junção catastrófica da miséria com a violência. O resultado é a inevitável luta pela sobrevivência do mais sórdido darwinismo social.
O Rio de Janeiro não é a única ilha com exclusividade a postular o privilégio do medo. Nos grandes e médios centros econômicos pelo Brasil, a sociedade acuada pelo medo da violência produz um nicho cada vez mais lucrativo: a indústria da segurança. O patrocínio da segurança somente é possível pela promoção indistinta da insegurança. A título de exemplo, já se cogitou a proposta de fazer um batalhão especial de policiais privados para atender exclusivamente as ocorrências de roubos de automóveis. Somente para a disseminação do medo, seguros, equipamentos de vigilância e polícia privada torna-se um nicho comercial com grande utilidade e longe das intempéries de crises econômicas.
A ideologia liberal disseminada amplamente na sociedade cultiva um arraigado cultivo do individualismo e o consumismo desenfreado. Tudo e todos são transformados em permanentes mercadorias e cabe ao consumidor se digladiar dentro das relações sociais para o acúmulo de seus bens. A droga é uma mercadoria que ao mesmo tempo promete saciar a suposta sensação de liberdade do indivíduo como ao mesmo tempo encarcera o usuário a dispor de mais dinheiro para adquirir mais mercadoria alucinógena. O sedutor mercado das drogas não encontra crise ou obstáculos para crescer e prosperar quase sem limites.
Portanto, o espaço público é ocupado pelo teatro de operações de uma guerra permanente pelo controle e distribuição de drogas para seus potenciais consumidores. Um lucrativo comércio onde um único quilo de pó se multiplica velozmente sua reprodução e também seus lucros. Nas redes de comando desta verdadeira indústria, onde o dinheiro fácil e a propina são componentes fundamentais para alimentar a conta bancária de uma miríade de “interessados” e entre eles se encontram policiais, advogados, juízes e políticos. Para a população que esta a margem do processo intestinal desta economia subterrânea resta somente arcar com a explosão secundária de violência. Secundária por um motivo estritamente profissional: o livre comércio não deseja interrupções ou bloqueios de nenhuma natureza. A violência impregnada dentro e fora das favelas é a manifestação do desequilíbrio da cadeia de interesses e se transforma no conflito pelo território das “disputas comerciais”. Num mundo marcado pelo permanente estado de barbárie, não existe mais a distinção entre liberdade e cárcere, todos são cooptados pelo medo permanente de uns contra os outros. O coletivo cede espaço para soluções individualistas totalmente inócuas e que fazem fomentar cada vez mais o estado de agressividade e violência social.
6. Considerações finais
No caso particular do Rio de Janeiro, o combate efetivo ao narcotráfico ao estilo de uma “cruzada messiânica” não produzirá nenhum efeito se for tão somente uma tarefa baseada na testosterona e na violência dos seus agentes repressivos. Da violência explicita somente repercutirá mais violência gratuita e generalizada. Pouco adianta fazer a maquilagem das estatísticas que de um passe de mágica os números são trocados ou ampliar infinitamente o número de agentes repressivos ou vagas em prisões. Não existem soluções mágicas, caricaturais e imediatas, exceto para uma vastidão de inescrupulosos políticos em períodos eleitoreiros.
Para uma visão mais abrangente do problema, é imperativo um amplo conjunto de ações que passa necessariamente pela descriminalização das populações dos morros e a ampliação substancial do suporte social do Estado. Segundo Vera M. Batista: “A política criminal de drogas imposta pelos Estados Unidos, assim como a econômica, é o maior vetor de criminalização seletiva nas periferias brasileiras: a prisão parece ser o principal projeto para a juventude popular” (8). Sem um projeto alternativo de “ocupação sócio-educacional” dos morros aliada a uma ampla política de geração de empregos atrelada ao desenvolvimento econômico e urbano, dificilmente as favelas deixaram de ser uma “terra de ninguém”. Existem alguns projetos bem sucedidos em favelas fluminenses, mas insuficientes para resolver a magnitude e complexidade que a questão necessita.
Para alguns setores da sociedade que se postulam como “democráticos”, mas que flertam o autoritarismo com cores fascista, é importante ressaltar que não será exterminando os moradores pobres de ruas, guetos ou favelas que se eliminará a pobreza e tampouco a violência. Não é a pobreza responsável pela criminalidade e o narcotráfico. É justamente o inverso: o comércio de armas e drogas se alimenta parasitamente do descalabro social e da pobreza atávica das camadas mais frágeis da sociedade. O próprio sistema capitalista necessita de um perdedor para que o outro sobressaia pisoteando as demais cabeças vencidas. Ademais, pouco adiantará o encarceramento de população marginalizada em um número infinito de prisões. Não será o confinamento extremo da pobreza que resultará na diminuição do estado de guerra permanente dentro e fora dos morros fluminenses.
Ignorar o drama de imensos contingentes populacionais que vivem torturados sobre a mira de metralhadoras no meio da guerra civil fluminense é fechar os olhos para o futuro da suposta democracia brasileira. E acima de tudo, é convidar a barbárie a se perpetuar nas estruturas sociais desse país.
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Notas & Referências
(1) Agência Brasil. Disponível em
(2) UM-Habitat. “The Challenge of Slums: Global Report on Human Settlements”, 2003.
(3) a (5) Justiça Global Brasil. Disponível em http://www.global.org.br. Acesso em 07 de setembro de 2007.
(6) Pinheiro, Paulo Sérgio e Almeida, Guilherme Assis. "Violência Urbana". São Paulo: Publifolha, 2007.
(7) Davis, Mike. “Planeta Favela”. São Paulo: Boitempo, 2006.
(8) Batista, Vera Malaguti. “A questão criminal no Brasil contemporâneo”. Margem Esquerda, no. 8, pp. 37-41. São Paulo: Boitempo, 2006.