NOTA AO LEITOR:
Este é um texto de divulgação preliminar e especialmente formato para os leitores deste BLOG a partir de trabalho submetido e aprovado para o “X Congresso Luso-Afro-Brasileiro” e deverá ser apresentado em Portugal (Braga, 2009). Artigo constituinte da série de trabalhos que buscarei tratar do estudo e reflexão a respeito da “sociedade do consumismo” como elementos de projeto de pesquisa.
(Ralph W. Emerson)
1. Prólogo.
Osasco, região da grande São Paulo, quinta-feira, 20 de novembro. Entro numa livraria de um shopping-center local, e em meio à diversidade de livros de auto-ajuda acabei me deparando um título inusitado “Selma”[1]. Segundo a publicidade anexa à pilha de livros, foram vendidos mais de 400 mil exemplares do título que foi traduzido para dez diferentes idiomas -– um best-sellers! E para minimizar minha ignorância: quem ou o quê era Selma? A capa do livro já denunciava, mas apelando para meu “ateísmo-cristão” e invocando à incredulidade de São Tomé, não custava folhear a “obra-prima”. Enfim, ler para crer: Selma era uma simpática ovelha que dava aconselhamento emocional à cada página folheada no melhor estilo de “receita de bolo” para que seu angustiado leitor possa alcançar mais rapidamente a tal “felicidade”! As “lições” da simpática “ovelhinha do Bem” se somam à uma miríade de títulos que promete em doses homeopáticas o que todos anseiam vorazmente, ou seja, a materialização do impossível gozo total na tradução “mágica” da palavra “felicidade”[2].
2. Elementos para uma Sociologia do Consumo: “Amo tudo isso”?
A sociedade de consumo massificado, a priori, utilizando-se o termo “sociedade do consumismo” (que também poderá ser entendida como uma extensão da “sociedade de hiperconsumo” na acepção de Gilles Lipovetsky[3]), é a busca insaciável e imediata pela idéia da possibilidade de encontrar a “felicidade”, seja ela qual for seu formato, significado ou essência. Com o aperfeiçoamento das estruturas capitalistas, o consumo de mercadorias vai além de sua mera aquisição de suporte à existência e a sobrevivência humana. No mundo ocidentalizado e globalizado pela complexidade de eventos e informações, trouxe o advento da hipermodernidade, marcada por dois pilares fundamentais: o mercado liberal e a democracia.
O hiperconsumo vai além das necessidades básicas e transforma mercadorias em mecanismos de prazer individualista e egocêntrico. A mistificação e o caráter fetichista fazem com que as mercadorias assumam significados que ultrapassam as suas bordas de meros objetos inanimados e adquirem vida autônoma no lastro da sociedade de consumo. Nunca na história das sociedades ocidentais foi possível produzir velozmente uma miríade de bens materiais possibilitando a conquista de um elevado padrão de bem-estar. No entanto, com o hiperconsumo, tudo se configura em mercadorias consumíveis, onde não existem limites na busca frenética para a saciedade.
3. Consumo, logo existo.
A sociedade do consumismo é aquela onde são emersas todas as promessas que possam ser atraentes e cativantes e, por sua vez, nunca realizadas ou saciadas pelos seus consumidores. Para tal intento, é necessária uma construção simbólica e afetiva que liga a mercadoria ao seu consumidor potencial. A reificação da mercadoria é uma característica da moderna sociedade capitalista e no hiperconsumo existe uma correção também afetiva que não poderá ser descartada. A aquisição de um aparelho de telefonia móvel, por exemplo, não serve apenas para realizar uma simples comunicação entre os indivíduos, mas algo que se torna um objeto com “vida autônoma”. Uma miríade de acessórios é criada para adornar o aparelho celular, incluso aí “vestimentas” e diversos adereços que dão “vida” ao objeto inanimado. Aqui, insisto na questão de um amplo dimensionamento da afetividade impregnada na hipermodernidade onde as relações entre objetos e indivíduos estão no mesmo patamar de interações possíveis repercutindo em todas as esferas de consumo.
A vida cotidiana numa sociedade onde consumo desenfreado é imperativo se constituiu em relações objetais. O vazio intrínseco dos relacionamentos afetivos é tão profundo que o ato do casamento, antes de tudo, se tornou muito mais um grande lucrativo negócio para a “indústria do matrimônio”. A liquidez efêmera dos laços afetivos possui a mesma dimensão imediatista para saciar o desejo, tal como a aquisição de qualquer mercadoria na prateleira de supermercado. A “indústria cultural”, termo trabalhado inicialmente por Theodor Adorno e Max Hokheimer era uma crítica a sociedade do consumo de massa (transformação da cultura em mercadoria[4]) e, pela égide antropofágica do capital, tudo parece ter sua própria “indústria” para atender a demanda consumista: das curas milagreiras de pastores neopentecostais ao circuito velado do sexo explícito.
4. Consumir, gozar e descartar.
Coisas e pessoas estão no mesmo nível de possibilidades de consumo, ou seja, os laços mercantis se aprofundam na dimensão da relação íntima do consumidor com o seu objeto desejado. Adquirir um modelo mais atualizado de carro, um novo parceiro sexual ou talvez o mais novo modelo de iPod? O que poderá trazer maior satisfação imediata para o consumidor na angústia de ser “feliz” visando preencher o vazio suscitado pelo aparelho psíquico inerente do hiperconsumo? Transcrevendo uma das assertivas de Zygmunt Bauman, “para que as expectativas se mantenham vivas e novas esperanças preencham o vazio deixado por aquelas já desacreditadas e descartadas, o caminho da loja à lata de lixo deve ser curto e a passagem, rápida”[5].
Um retrato pertinente são as campanhas publicitárias do totem de consumo-mor das sociedades ocidentalizadas: o automóvel. Nas peças publicitárias, a idéia impregnada não é “vender” meramente uma mercadoria, mas construir a simbologia do objeto, ou seja, uma verdadeira “adoração” pela mercadoria por meio da hipertrofia de um fetichismo erotizado e sedutor. Mulheres belas e “fatais”, velocidade, classe, estilo e paisagens surreais mapeiam o cenário idílico e viril da propaganda televisiva: será que você é digno de possuir tal mercadoria? -- diz implícito (ou explicitamente) o mote da propaganda. Neste campo de patente reificação, não é o consumidor que escolhe a mercadoria, mas é justamente o contrário: a mercadoria que “escolhe” seu potencial consumidor e em troca é a “conquista” da satisfação plena e gozo total[6].
5. Necessidades coletivas, ações atomizadas.
A política é sucumbida pela via do mercado e a liderança da autoridade é apenas uma commodity desta liberdade de suposta emancipação e conduzindo à uma desterritorização do espaço público. A democracia liberal se estabelece meramente por via de processos eleitorais e tampouco se trata de uma democracia de acesso aos meios de produção. A mobilidade social é mais uma ilusão que se acrescenta no ideário do liberalismo da democracia política. Tais como a proliferação dos shopping-centers, os espaços privados de consumo substituem os espaços públicos livres da opressão consumista. A autonomia é arregimentada pelas “forças do mercado” e moldada pela tirania das marcas esvaziando-se os sentidos e significados do coletivo em prol da saciedade nunca satisfeita do indivíduo.
O “espaço político” é um entreposto possível entre a política desejada e os interesses de fomentadores financeiros das campanhas políticas (patrocinado por grandes corporações econômicas). Uma campanha política “vitoriosa” se tornou em sua essência um show midiático com as mesmas concepções que se vende um novo lançamento automotivo da corporação automobilística ou uma caixa de sabão em pó “de marca”. Carros, políticos e sabonetes estão disponíveis no mercado para o usufruto do seu consumidor com quase todas as premissas derivadas de uma boa campanha de marketing. Poderia a política coibir as práticas coercitivas do consumo midiático uma vez que seus atores políticos são financiados pelas grandes corporações?
Dentro do rol programático entre partidos da direita e da esquerda do espectro político, transformam a idéia de espaço público numa alegoria em desuso. A privatização da política destina em entregar ações coletivas nas mãos dos indivíduos em decisões atomizadas. Na diluição dos partidos políticos, cabe a agremiações privadas, tais como as organizações não-governamentais (ONGs), trabalharem com a “coisa pública” de acordo com as diretrizes dos seus sócios. Seguindo à lógica de privatização do espaço público, a idéia vaticinada pelos pedágios em estradas e vias de acesso é uma clara demonstração que somente é possível construir uma sociedade com ações atomizadas. Logo, cabe então ao cidadão-consumidor arregaçar as mangas e resolver por si mesmo todas as ações que deveriam ser necessariamente construídas coletivamente. Na sociedade dos indivíduos à única política possível é aquela que satisfaz as urgentes necessidades de consumo individualizado e narcíseo. Assim ressalta Michel Maffesoli: “É importante levar a sério o descaso para com os diversos ativismos que marcaram a modernidade (política, produtiva): aquilo que não depende de nós torna-se indiferente”[7].
6. Das inconveniências da cidadania à cultura narcísea da sociedade dos indivíduos.
Um lançamento local de uma mercadoria será um evento mundial se sua produção estiver de uma forma conectada à alguma empresa capaz de transacionar seus interesses globalmente. Nessa esfera de “satisfação”, todas as mercadorias prometem a satisfação plena, sedutora e imediata do seu consumidor. Estampada em capas de revistas ou na televisão, as “tecnologias da saúde” estão acessíveis ao mercado consumidor com suas fórmulas que prometem aos seus usuários todos os sortilégios inerentes à felicidade, perfazendo desde as promessas da hercúlea virilidade movida à Viagra à amenização do desprazer na composição do Prozac. Por sua vez, a indústria farmacêutica desprende percentual significativo do total de seus de investimentos no uso sistemático da máquina de construção de marketing de seus produtos para o mercado. Os medicamentos deixam de ser condicionantes para a recuperação e profilaxia de moléstias e enfermidades para se tornar também alvo de objetos de consumo sem prescrição médica [8].
Quem não consome ou não tem condições de consumir é um pária deste sistema [9]. O capitalismo supera os demais sistemas ideológicos-socioeconômicos quando mantêm em suas bases fundamentais premissas que nenhum outro sistema promete ou consegue se sustentar: a possibilidade de satisfação material e sensorial dimensionada na saciedade do gozo total. O consumidor nunca está satisfeito com o gozo parcial e possível, e logo deseja atingir sempre a maximização de sua satisfação e assim alcançar o que ele acredita ser a “felicidade” tão ansiada. Segundo a análise de Maffesoli, “o gozo não mais é remetido a hipotéticos e 'róseos amanhãs', e sim vivido, seja lá como for, no presente”[10].
As relações objetais11 são constituídas na esfera da mercadoria e adquire alguma consistência afetiva na medida em que seja possível encontrar os mecanismos sensoriais do gozo total na psicopatologia da sociedade de consumismo. Num sistema onde o culto à aparência contribui na mediação entre seus indivíduos, a segurança é vital para diminuir a insegura angústia e fragilidade do indivíduo. “Estar à frente da tendência de estilo”, como ressalta Bauman[12], significa uma tentativa de encontrar a si mesmo (ou seja, o indivíduo-consumidor) num mundo onde suas relações materiais e imateriais são mercantis, líquidas, efêmeras e passageiras.
Na hipermodernidade a cultura do “corpo perfeito” é o objeto de desejo, ostentação e auto-identidade ansiado a qualquer custo dentro e fora das academias de modelagem estética. Dentro das estruturas psicopatológicas desse processo, dois fenômenos distintos na forma, mas unívocos em sua dimensão referentes aos estilos de vida do hiperconsumo: a obesidade e a anorexia. Sedentarismo, compulsão alimentar, vaidade, angústia e vergonha são elementos intrínsecos de um modelo de vida onde a forma sobrepõe o conteúdo. No caso da obesidade, típico das sociedades modernas de consumo, são os excessos alimentares aliada ao sedentarismo que dão vazão à inseguraça e angústia do vazio. No caso da anorexia (também conhecida como “anorexia nervosa”) ocorre mais comumente em mulheres jovens e, em linhas gerais, como descreve Anthony Giddens, “(...) pode ser entendida como uma patologia do autocontrole reflexivo, operando em torno de um eixo de auto-identidade e aparência corporal, em que a vergonha desempenha papel preponderante”[13].
A erosão da identidade permite que o indivíduo somente passe a sobreviver no limite imerso num mundo de liquidez de valores e a transformação do próprio corpo como elementos atávicos de sua construção da auto-identidade. Desta maneira, o “corpo perfeito” é ditado pelo consumo, ou o que os “outros” (ou seja, as “as concepções estéticas do mercado”) ditarem como “modelos padronizados” a serem cultuados e mimetizados. Para trilhar estes caminhos, são importantes os estudos de Michel Maffesoli a respeito do estudo das “tribos” e o processo de construção da identidade da sociedade dos indivíduos dentro do hiperconsumo. Ainda é fecundo analisar também que tais indivíduos anseiam se desvencilhar da “multidão” na medida em que se inserem em “tribos” que coadunam com seus ideais de consumo e estilo de vida (processo que pode ser identificado pela “individualização” pelo coletivo). Para isto procuram até mesmo mutilar seu próprio corpo mais bem caracterizado pela ostentação de adornos de metal e similares, os chamados piercings, além da dispersão de tatuagens que marcam o corpo de forma à chamarem atenção para si [14].
7. Epílogo: O insaciável moto-contínuo.
Na sociedade de consumismo o indivíduo existe na medida em que consome para além de suas necessidades e fazendo parte da cadeia de replicação do eixo produção-consumo-insaciedade. Todavia, a possibilidade de chegar a mecanismos de satisfação pessoal nunca se concretiza e os indivíduos convertem um possível advento da felicidade em ansiedade e angústia. As construções da hipermodernidade trazem conseqüências deletérias para a constituição da sociedade e permite o aprofundamento do fosso social que gera e amplifica a barbárie.
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Notas:
[1] BAUER, Jutta. Selma. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
[2] Numa rápida busca no site da Livraria Cultura, uma grande empresa paulista especializada no ramo, foi encontrado 239 títulos com a palavra “felicidade” estampada na capa.
[3] LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[4] ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
[5] BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2007, p. 108.
[6] A análise do automóvel como um dos principais elementos de reificação na sociedade consumista merece uma atenção pormenorizada à parte pelas dimensões psicanalíticas que envolve seu estudo e que escapa do objetivo do presente trabalho.
[7] MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004, p. 45.
[8] Não é de causar estranheza que a maioria das farmácias disponíveis numa cidade como São Paulo são verdadeiros shopping-centers onde é possível encontrar uma miríade de produtos, inclusive medicamentos!
[9] O capitalismo globalizado é movido à disponibilidade de crédito no oceano da volatilidade especulativa financeira. Praticamente é possível dizer que toda crise dentro do capitalismo é movida à superacumulação, superprodução, colapso de liquidez recaindo na pulverização da “confiança” dos mercados. A primeira grande crise do capitalismo estadunidenses do século XXI (a quebra de Wall Street, 2008) teve como prenúncio com a falência creditícia do setor imobiliário. Quando as artérias da bolha de consumo via crédito muito facilitado e se encontraram interrompidos, estará em risco os próprios alicerces moldais das roldanas do sistema capitalista. Não consumir significa estagnar o estoque de produção e assim causar um desequilibro no instável castelo de cartas onde se apóia todos os atores e “players” globais do modelo. Diante do colapso econômico estadunidense e com a retomada do “keynesianismo civil”, a utilização das reservas do tesouro dos Estados Unidos para injetar no setor privado em torno de 5,6 trilhões de dólares (previsão a ser alcançada até o limiar de 2009) . Deste montante, uma parte é para salvar da falência empresas que quebraram no cassino financeiro global (ou seja, a socialização das perdas privadas movida à dinheiro público do contribuinte -- o capitalismo sem riscos!) e o restante é para reaquecer o mercado de crédito e recuperar a “confiança” dentro do mercado de consumo estadunidense.
[10] MAFFESOLI, Michel, ibid., p. 29.
[11] No esforço de aproximação da Psicanálise para o presente estudo, compreendo que não se concebe o objeto separado da qualidade do relacionamento com o sujeito.
[12] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação de pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008
[13] GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
[14] Aqui está presente um tom de desespero do self em busca de identidade e identificação pelo “outro” e a insegurança de não sucumbir ao vazio.