terça-feira, 25 de março de 2008

A Angústia na Hipermodernidade: Felicidade, Autofagia e Barbárie na Sociedade de Hiperconsumo



A felicidade é uma ilusão? Quase invariavelmente a passagem de Ano Novo, ano após ano, é sempre um espetáculo de mesmices. Um misto de falsas promessas, ilusões alimentadas e mais um bom número de pedidos irrealizáveis. Não é crime nos tornarmos cada vez mais indiferentes ao resto de tudo que não seja aderente ao nosso próprio umbigo. Crime é fazer do egocentrismo a arma fatal contra o outro. Gilles Lipovetsky em, “A felicidade paradoxal” (2007), argumenta que nunca na história do mundo ocidentalizado tivemos tantas oportunidades e acessos a tal felicidade como agora. No entanto, paradoxalmente ainda continuamos infelizes. É pertinente tecermos algumas considerações a esse respeito.

A idéia de hipermodernidade está associada a dois pilares básicos interdependentes, segundo Lipovetsky, o mercado liberal e a democracia burguesa. A hipermodernidade transpõe o intrincado mundo da pós-modernidade fomentando angustias adicionais para o ser humano. Por que não ser feliz na esfera da exuberância material? A resposta poderá estar diretamente ligada à construção do fantástico mundo do consumo de massa e suas frivolidades inerentes. A “civilização do desejo” arquitetada pelas sociedades liberais na segunda metade do século XX, esclarece Lipovetsky, marca o nascedouro de uma nova modernidade. Aparentemente pouca coisa mudou, “continuamos a nos mover na sociedade do supermercado e da publicidade, do automóvel e da televisão”, escreve Lipovetsky ressaltando o diferencial que transformou as normas sociais, a “revolução no consumo”, o “hiperconsumo” e sua unidade hiperindividualista básica, o “hiperconsumidor”.

Do iogurte, passando pelos mais íntimos sentimentos até à política, o mundo foi transformado através da esfera do consumo e do marketing. Consumimos de maneira histriônica toda forma de suvenir que se pode (e o que não se poderia!) colocar entre prateleiras e sobre o balcão: amor, orgasmo, medicamentos, cultura, ecologia, religião, ideologias e ódios. Como sintetiza Lipovestky, uma nova fase do capitalismo, “a sociedade de hiperconsumo coincide com um estado da economia marcado pela centralidade do consumidor” (Lipovetsky, 2007, p. 13). O consumo logo passa da necessidade fundamental de garantiria básica da existência humana para a ansiedade agonística e desesperada do hiperconsumidor.

Uma outra característica pertinente que alicerça nossa sociedade hipermoderna é a amplo apelo ao “descartável” ou “redundante”, e que pode ser conhecido como “refugo”. Zygmunt Bauman (2005) analisa estas construções sociais “líquidas” da pós-modernidade liberal e ocidentalizada. De sentimentos, telefones móveis a indivíduos, o refugo é algo que incomoda os indivíduos e que a sociedade desejar descartar de imediato. A autofagia pelo automatismo é reinante. O “hoje” já passou e queremos logo o “amanhã”. Como na velocidade dos cliques da internet de banda larga, a vida pós-moderna é na hipermodernidade um acontecimento imediatista. Quantas pessoas já não ficaram tensas por meros segundos até abrir uma correspondência por correio eletrônico? Meros segundos que para elas soam como um jazigo eterno!

No hiperconsumo daqueles que anseiam por afetividade, o amor e o gozo são igualmente fúteis e paradoxalmente com inúmeras possibilidades de conhecer “outras pessoas” na intricada cadeia de relacionamentos precários, autofágicos, evasivos e redundante frivolidade. Nunca na história das sociedades ocorreram tantas possibilidades das pessoas se conhecerem e, no entanto, a angústia, depressão e a quantidade de relacionamentos liquefeitos, diluídos e descartados são crescentes. Entendemos aqui a angústia no sentido clássico psicanalítico como forma de uma auto-proteção diante do desconhecido, inevitável ou inesperado na busca de uma sobrevida física e mentalmente (Emanuel, 2005). Erich Fromm descreve que “a experiência da separação desperta a ansiedade; é, de fato, a fonte de toda ansiedade” (Fromm, 1966, p. 26). Do sexo de ontem já saciado perdeu a graça em poucas horas é será trocado pela busca de outros genitais no dia seguinte. A angústia cresce de maneira desmesurada na ânsia de obter o idílico “par perfeito”. O descarte da parceria é logo feito quando já foi preenchido o gozo imediato. Os rótulos e os mitos da “parceria ideal” são deflagrados desde os bares de hordas pansexuais de lobos e lobas famintos na “caçada” aos sítios pagos de relacionamentos em meios eletrônicos. Desta maneira “[...] numa sociedade de caçadores, a expectativa do fim da caçada não é tentadora, mas apavorante – já que esse fim só pode chegar na forma da derrota e a exclusão pessoais” (Bauman, 2007, p. 112). A ansiedade é desencadeada pelo hiperconsumo de prazeres egocêntricos na multidão de gozos possíveis. Quando “os corpos são livres, a miséria sexual é persistente” (Lipovetsky, 2007, p. 17), o desejo nunca é saciado e o resultado dramático é a angústia. Consequentemente ocorre à depressão pelo vazio incomensurável e pela oferta frívola de relacionamentos fúteis e, em seguida, logo à tona a decepção. Quando o amor se reduz à um mero consumo de iogurtes light ou diet, o resultado é o eterno retorno ao vazio existencial jamais saciado e que ronda os medos mais profundos do seres humanos em sociedade. É um eterno recriar de uma ingênua ilusão autofágica da felicidade pela quantidade hiperconsumidora de parceiros. Na análise pertinente de Fromm, “numa cultura que prevalece a orientação mercantil, e em que o sucesso material é o valor predominante, pouca razão há para a surpresa no fato de seguirem as relações do amor humano os mesmos padrões de troca que governam os mercados de utilidades e trabalho” (Fromm, 1966, p. 21).

A sociedade de hiperconsumo desagrega as culturas de classe e promove a homogeneização do que Lipovetsky chama de “modelo consumista-emocional-individualista” para todos os segmentos etários. O hiperconsumo abarrotou as possibilidades das sociedades parirem e cuidarem de suas próprias crianças sem que elas não se transformem em futuros adultos hiperconsumidores dependentes químicos ou com profundas carências psicanalíticas. Na medida em que o consumo segmenta cada vez mais faixas etárias, excetuando as crianças na primeira infância, não existe mais exclusão dentro do fantástico universo do hiperconsumo. Fomentado a quintessência do consumo, as escolas de orientação mercantil promovem com algum estofamento cultural os futuros alunos hiperconsumidores. Por sua vez, os pais hiperconsumidores não querem mais ser responsáveis em solitude pela criação dos filhos e delegam à própria prole a divisão da educação. Em nome de uma equivocada retórica de “responsabilidade não-autoritária”, os pais “legais, bonzinhos e bacanas” estimulam seus filhos ao consumo e fazem deles os próprios hiperconsumidores. Movidas por um espetáculo da publicidade infanto-juvenil, crianças como “pequenos imperadores” ditam as regras para os pais do que comprar e decidem pelas suas mercadorias fazendo suas próprias escolhas. Logo, saciado o desejo imediato do “imperador-mirim”, os pais “compram a paz” e se deliciam momentaneamente na felicidade promovida pela indústria da diversão infanto-juvenil. Desta maneira, os pais procuram o auto-perdão por longas ausências ou negligencias sentimentais perante a prole, ao mesmo tempo em que acreditam cederem “pedagogicamente” um direito ao filho à felicidade, aos prazeres e ao individualismo narcisista.

Existe felicidade no trabalho? O “refugo humano” é um conceito mais profundo. O uso e o descarte de pessoas atiradas ao lixo. Os mundos do trabalho pós-fordista se constituíram numa miríade de ilações a respeito das estruturas trabalhistas. A informalidade em nome da “eficiência” neoliberal produziu variantes do emprego que podemos classificar em: o super-emprego, o subemprego, desempregado e a escória. O super-emprego é aquele onde o quadro de pessoal é “enxuto” em nome do pomposo da “reengenharia” (ou algum outro rótulo de falácias administrativas) e o trabalhador que sobrou ao expurgo é segregado a uma série de tarefas alucinadas e sobrecarregadas bem ao estilo “tudo-ao-mesmo-tempo-agora”. O subemprego se situa na marginalidade (geralmente é refém da “flexibilização do emprego”), pode ser o empregado que não tem segurado suas garantias trabalhistas da economia formal ou trabalhador de rua (ou seja, o popular “camelô”). O desempregado é aquele trabalhador pendular atemporal onde, em poucas semanas, ora alguma exercendo alguma ocupação com mínima renda, ora esta na busca interminável por emprego. A escória, essa massa amorfa e sem vida perante o mercado, é o descarte de pessoas que definitivamente não entrarão mais no mercado de trabalho, seja formal ou não. Para a maioria dos trabalhadores assalariados, a felicidade pelo emprego se tornou a mero alívio de alguma renda no final do mês. A felicidade faz a transubstanciação por um mero pedaço de pão diário e existem aqueles que “agradecem aos Céus” por isto! A maioria dos que se alimenta até enfartarem tem ojeriza os que nada tem para comer. A pobreza incomoda a paisagem e “suja” as cidades. Logo existe um alívio de felicidade quando moradores de rua, integrantes da escória, são banidos como cães das áreas nobres das grandes cidades. A felicidade burguesa é egocêntrica, esteriliza as ruas nobres eliminando a qualquer custo o refugo humano e pode desfilar com credenciais pitorescas de mercadorias de desmedido luxo alienado.

O hiperconsumo é um espetáculo do conforto. Aos que possuem poder aquisitivo pode consumir segurança e luxo descartáveis em ruas que são verdadeiros “bunkers de paz” em meio à dispersão da violência. O templo da felicidade do hiperconsumo de massa, o “shopping center” é o retrato da negação da cidade e dá a sensação de segurança e felicidade das compras com tranqüilidade. O consumo não é apenas uma amálgama entre necessidade e disponibilidade, mas comprar evasivamente se tornou um ato de prazer com características sexuais (em referência ao gozo freudiano). A felicidade diante de uma compra abstrata e utilidade pífia realçam as características de ansiedade do hiperconsumidor. O desejo de comprar cada vez mais torna o consumo como um ato de felicidade propriamente dita. O marketing de massa sabe exatamente destas características dos consumidores e exploram a exaustão o viés da angústia e o desejo pelo fetiche da mercadoria através da pasteurização e homogeneização das necessidades humanas: “Você precisa experimentar o produto “A”, porque “A” vai fazer sua vida mais feliz!”. Dessa maneira, a “felicidade instantânea” se configura em um autômato saciar da necessidade passageira e, por sua vez, a publicidade capta tão eloquentemente suas matrizes do adornamento da mercadoria como objeto simbólico constituinte de uma miríade de desejos consumistas. Assim que o desejo da aquisição for concretizado via cartão de crédito ou débito automático, uma nova carência surgirá e renovará todo o processo de angustia pela saciedade do consumo. O livre mercado não prioriza o que produzir ou vender, mas somente o que vai dar lucro e ponto final. Existem inúmeras retóricas politicamente correta a respeito da “responsabilidade social” das empresas, mas ninguém questiona, por exemplo, para situar alguns segmentos, qual a “responsabilidade social” dos fabricantes de armas, cigarros, bebidas alcoólicas, agrotóxicos e pesticidas, publicidade e empresas de agiotagem profissional de “micro-crédito”? Ainda existem os que defendem o uso maciço do hiperconsumo para garantir os famigerados “postos de trabalho”, mas nunca especificam as suas margens de lucros das empresas que ganham com os louros da mais-valia. A felicidade pelos lucros independe da desgraça alheia, afinal, para os arautos do neoliberalismo, a verdadeira “responsabilidade social” é do Estado, o resto é a vantajosa dedução dos “custos sociais” no imposto de renda de “pessoa jurídica”.

O hiperconsumo não poupa nem mesmo a religião que se transformou num nos espetáculos de dispersão cultural e socioeconômico mais evidente na era da globalização. Não é apenas a avidez pelo bem-estar material buscada ansiosamente pelo hiperconsumidor, “mas ele aparece como um solicitante exponencial do conforto psíquico, de harmonia interior, cujas técnicas do desenvolvimento pessoal são disso fundamentais testemunhas do desenvolvimento de um mercado da alma” (Ewald e Soares, 2007, p. 25). Na atual safra de seres humanos, o niilismo da fé é o paradoxo da busca frenética por Deus. Agora, não mais para a redenção contra os maus agouros do destino, mas somente o alívio das satisfações das emoções imediatas. Os templos da fé proliferam em todos os segmentos da sociedade prometendo a tal “cura espiritual” e todos os sortilégios da alma mediante a crença em Deus e o pagamento de dízimos religiosamente. Uma série de outras crenças, com ênfase nas religiões orientais, abarrota um leque de diversas opções para aqueles que carecem ansiosamente de “fé espiritual”, e que sua vez, nunca saciadas definitivamente pelo consumo materialista. Não é a toa que toda a depauperada literatura de “auto-ajuda” se consolidou como uma metástase dentro das livrarias e gerando grande parte dos lucros das editoras.

Não há ilusões perante a felicidade fabricada e preconizada pela sociedade de hiperconsumo. O homem hiperconsumidor possui um atávico niilismo existencial e devoto acirrado das veleidades do marketing de massa. Do morador de algum barraco em algum vilarejo de pau-a-pique aos sedutores palacetes da burguesia paulistana da região dos Jardins, todos são seduzidos pelo hiperconsumo com abissais poderes de compra. A vida na hipermoderna se tornou um fantástico mundo da aquisição de bens materiais, psicológicas, sexuais e sentimentais. É importante ressaltar os questionamentos de Erich Fromm quanto às supostas certezas de “mentalidade sadias” tão alardeadas orgulhosamente pelas sociedades ocidentalizadas: “Podemos estar tão seguros de que não nos estamos iludindo?” (Fromm, 1974, p. 17).Na hipermodernidade, a felicidade se realiza como mera ilusão e não será possível ser duradoura, mas apenas saciada momentaneamente a espera de uma nova e feliz aquisição mercantil mediado pelo hiperconsumo. Neste caminho da segregação entre os que consomem e os que assistem de barrigas vazias os outros consumirem, abrem-se lastros torrenciais para a escala sem precedentes de uma autofágica sociedade rumo à barbárie.



Referências bibliográficas

1. Bauman, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

2. Bauman, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

3. Fromm, Erich. A arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia, 5ª. Ed, 1966.

Fromm, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 7ª. Ed., 1974.

4. Emanuel, Ricky. Angústia. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Ediouro; São Paulo: Segmento-Duetto, 2005.

5. Ewald, Ariane Patrícia e Soares, Jorge Coelho. Identidade e subjetividade numa era de incerteza. Estudos de Psicologia, 12(1), 23-30, 2007.

6. Lipovetsky, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

quinta-feira, 20 de março de 2008

ESTRANGEIRO NO MEU PRÓPRIO PAÍS: cenas de subserviência calhorda ou turismo acadêmico inútil?


Para que(m) serve(m) os congressos acadêmicos? Em tese, para o fomento do debate democrático, crítico e atualização dos mais diferentes níveis de informações e dados. Todavia, na minha avaliação, não foi a preocupação destas premissas que foi levada em conta no Regional Science Association International (RSAI) World Congress 2008, realizado na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) entre os dias 17 e 19 de março. Um congresso cujo enfoque básico se assentava nos estudos econômicos regionais.

Fiz todos os trâmites normais pedido pela organização do evento e paguei a taxa de inscrição. No dia 18/03, cheguei ao local do evento para formalizar minha inscrição e pegar o crachá. Fui logo recebido por um sorridente "Hi!" da atendente com jeito e esboço do mote "faça o seu pedido" de uma conhecida cadeia de hambúrgueres transnacional. Após ter resolvido o problema a respeito do meu pagamento da inscrição (grande preocupação por parte dos organizadores!), recebi meu material. Destaco que o mais curioso foi a "caneta ecológica" feita de material reciclável e a sacola com “tecido ecológico” (a ostentação da hipocrisia do “ecologicamente correto”)! Percebi que todo o material impresso estava em inglês sem direito a nenhuma outra linha em português ou qualquer outro idioma. Perguntei a respeito do excesso de estrangeirismo dos livretos para uma moça do pessoal de apoio do evento e fui informado que tudo foi impresso e organizado na língua inglesa uma vez que o evento é "internacional”(!). Argumentei que para qualquer evento de porte “internacional” e com algum respeito trabalharia com duas línguas, uma nativa e outro idioma (que poderia ser eventualmente o inglês). Nada adiantou. Naquele momento, estava mais preocupado com a apresentação do meu trabalho que iria começar em menos de uma hora e resolvi ignorar o fato por alguns instantes. Péssima opção! Prova de que quando aceitamos passivamente a boçalidade o preço posterior sempre será muito alto.

Ao aproximar da sala onde seria minha exposição, fiquei sabendo que somente a língua inglesa poderia ser utilizada. Neste momento, como diz a expressão popular, “caiu a ficha”! De primeira mão, achei que era uma predileção arrogante por parte dos organizadores. Mesmo ainda insistindo em fazer a apresentação em português, fui informado novamente que de fato era imposição o inglês por ser um evento "internacional". Detalhe: não haveria nenhuma forma de tradução. Fiquei perplexo e surpreso com o fato, afinal de contas por mais internacional que seja o evento, estava no meu país da língua de Camões (apesar de nossos milhares de analfabetos)! Argumentei sobre a inverossimilhança da situação para alguns membros da equipe de apoio e todos diziam que somente o inglês era aceito para as apresentações. Indignado, fui levado até o professor que chefiava a organização do evento (que prefiro não citar o nome) e expliquei ao mesmo a situação. Ele com um ar de Pilatos, disse que "as pessoas que participam do evento pagaram para assistir as apresentações em inglês e que isto não seria alterado" e que ele "não poderia fazer nada" (Pensei: FEA-USP Turismo & Cia.?). Cada estrangeiro desembolsou para pagar a inscrição do congresso um valor de 300 euros (!) conforme informações do próprio site oficial do evento. E com sorriso quase de deboche recomendou "faça o que achar que pode"! Uma das promotoras do evento que estava ao nosso lado recomendou que eu "improvisasse" o inglês. Argumentei que não seria possível, uma vez que meu inglês estava mais próximo do ursinho "To Be" e que seria totalmente diferente preparar uma apresentação em português e imediatamente passar para o inglês em questão de minutos (eu não teria esta pirotecnia momentânea!). O mais curioso é que foi justificado pelo fato de não ter nenhuma forma de tradução: "sairia muito caro"!

Para tentar persuadir-me (e me fazer com que eu me sinta um verdadeiro otário diante do meu analfabetismo cultural!), fui informado que fato semelhante ocorreu com alguns outros participantes brasileiros do evento, mas alguns deles “deram um jeitinho” ou “decoraram o texto”. Trocando em miúdos, o que queriam dizer de forma mais educada era que eu era o único “chato” do congresso preocupado com questões tão “tolas”! Para variar, havia argumentado que para um evento internacional era fundamental ter algum tipo de tradutor tal como qualquer evento do gênero. Inútil! Naquele momento me senti em estrangeiro no meu próprio país e proibindo de expressar em minha própria língua materna. Diante dos acontecimentos decidi não apresentar meu trabalho e desisti de participar do evento. Uma das assessoras de comunicação disse que compreendia o meu caso e que passe posteriormente no local de inscrição do evento para pegar o certificado uma vez que eu já tinha pago e tudo estava registrado meu trabalho nos livretos e anais do congressos. A sensação era de um enorme nariz vermelho sobre meu rosto bem ao estilo persona non grata!

Vale destacar a apresentação “cultural” escolhida para os participantes estrangeiros no congresso: a capoeira (manifestação bem típica da capital paulista!). Perguntei se não teria escola de samba com mulheres semi-nuas ou coral de criancinhas pobres de alguma favela das redondezas. Nada era mais caricatural e patético o reforço dos estereótipos preconceituosos da identidade brasileira: mulher (leia-se prostituição), futebol, violência, floresta amazônica e seus indígenas. A fauna cultural brasileira para exportação! Interessante frisar que o mote do congresso não era para ser uma exposição de negócios ou coisas similares, mas um evento acadêmico! (Nunca é demais salientar que nada tenho contra a capoeira e outras manifestações culturais, porém sou contra os reforços ideológicos impregnados de preconceitos e subserviência.)

Para quem conhece um pouco dos corredores da FEA-USP, não é de estranhar o altivo tom imperativo do amor canal com os modelos estadunidenses impregnado de forte ideologia neoliberal. Não retrato um grupo de interesses qualquer dentro da sociedade, mas estou me referindo a uma elite bem-educada e culturalmente bem estruturada e que ajuda a dar as rédeas políticas e econômicas para o restante do país. A questão de qualquer congresso internacional ser falado em um idioma estrangeiro não é nenhuma novidade ou representar algum tipo de problema. Todavia a obrigatoriedade do uso exclusivo de uma língua que não seja a língua nativa onde se realiza o evento é assustadoramente preocupante. As cores ideológicas se avivam neste momento e todas as pessoas de uma hora para outra se tornam falantes (naturais ou não) da língua inglesa em território cuja língua oficial é outra!

“A língua é minha pátria”, já “cantaneava” Caetano Veloso num dos versos de uma de suas canções. As implicações deste fato estão longe de velejarem nas ondas da trivialidade. Qual malefício teria se todos falarem o inglês em terras tupiniquins nos eventos acadêmicos (tendo em vista o ocorrido)? Muitos. A primeiro deles é o descolamento do sentido de nacionalidade. Será que somos nacionalistas apenas nos jogos da seleção brasileira de futebol e quando algum brasileiro é barrado nos aeroportos do chamado Primeiro Mundo? A imposição sistemática do inglês é o castiçal da ideologia neoliberal dominante que prega a globalização com cores do imperialismo cultural estadunidense. Nada é um mero jogo de “cordialidade” dos afáveis e hospitaleiros brasileiros perante os gringos. Nossas raízes paternalistas, escravocratas, subservientes e cartoriais de nossas elites políticas e econômicas emergem como fantasmas parasitando na história da constituição de nossa sociedade.

Segundo ponto se refere aos rumos da universidade pública. Qual é o modelo de universidade pública que realmente estamos construindo? E a pergunta mais crucial: quais modelos queremos construir para a universidade pública para as próximas décadas? Concentrador e parasitário destinado a uma pequena elite mimetizadora das liturgias imperialistas ou democrática e voltada para o pensamento da construção do que Octávio Ianni chamou de “Brasil-Nação”. Quando um evento é patrocinado por uma universidade pública é razoável imaginar que deva ser amplamente aberta a todos os interessados independente de suas particularidades. E o que aconteceu neste evento da RSAI na FEA-USP? Transformou-se num evento privado para um nicho estrangeiro tão reduzido que poucas pessoas não ligadas ao evento perceberam que estava ocorrendo algum tipo de congresso (ainda foi programado justamente no período de recesso das aulas dos estudantes da instituição, ou seja, uma forma de excluí-los de antemão!). O que acredito mover mais a indignação são os eventos que deveriam ser públicos e abertos (tal como não foi o congresso da RSAI) serem ostentados por uma instituição pública nutrida com verbas públicas e que deveria, em tese, se preocupar com a divulgação e dispersão do conhecimento e não segrega-lo sistematicamente.

Terceiro ponto e acredito muito pertinente se refere à questão dos modelos ideológicos impregnados nas universidades. O modelo da FEA-USP é do paraíso telúrico de algum ponto da Suécia ou jardins estadunidenses. Alguém já ouviu falar na “São Paulo of University”? Chegamos ao cúmulo da subserviência tupiniquim ao ler coisas abobalhadas como nome da Universidade de São Paulo traduzida para o inglês, e no evento da RSAI era o que vigorava em todos os cartazes, panfletos e no site oficial do evento. Por sinal, o site do evento, todo redigido na língua inglesa sem nenhuma concessão para outra língua, trazia imagens paradisíacas do Rio de Janeiro induzindo ao visitante das páginas da internet acreditar que São Paulo e Rio de Janeiro possuem os mesmos cenários. Nada contra a capital carioca, todavia é novamente a reafirmação dos estereótipos tão desnecessários para qualquer tipo de evento internacional, principalmente acadêmico. É lamentável que uma das maiores instituições de ensino de Economia da América Latina ao invés de buscar uma identidade particular e de encontro com a realidade brasileira é um mero arquétipo de um modelo impregnado de entulho ideológico do imperialismo cultural estadunidense.

É natural que a produção do saberes não se resume aos prédios e instalações megalomaníacas, mas da capacidade de professores e alunos ser potenciais irradiadores de idéias e conhecimento. Precisamos definir alguns pontos consensuais entre eles é rejeitar o modelo induzido e mimetizador de um estrangeirismo patético e inútil para nossa realidade dentro das universidades brasileiras. Um modelo elitista que pouco colabora para sanear nossas abissais disparidades socioeconômicas. Uma universidade distante da realidade local pouco serve para a sociedade, exceto a manutenção do status quo de uma pequena elite ao custo do erário público. Ao proibir a língua portuguesa num evento dentro de uma universidade pública não é apenas um mero reclame de alguém que se sentiu humilhado perante a situação, mas, sobretudo é o modelo ideológico fascistóide levado a cabo sem nenhuma reflexão crítica ou sequer esteja preocupado com a realidade brasileira (o paradoxo se amplia quando se lembra que justamente o evento trabalhava com as dinâmicas regionais!).

Os sentidos da globalização reinante não é o modelo que privilegia a universalização e promoção do regional, porém é a bota imperialista que esteriliza a diversidade e impõem a colonização cultural com bases estadunidenses como objetivo primaz estendido a todo o globo. Por exemplo, quem definiu a língua inglesa como língua oficial do planeta Terra? Uma coisa é a opção por uma língua ou outra, outro fato completamente diferente é a imposição de uma única língua como o único meio de comunicação perante as pessoas. A minha preocupação em especial são os falsos mitos empurrados goela adentro de milhares de pessoas muito além das fronteiras estadunidenses. A mídia a serviço do grande capital se encarrega alegremente de dispersar na sociedade os entulhos ideológicos em nome da chamada “liberdade de imprensa”.

A pasteurização da cultura é tão perigosa e nociva ao desenvolvimento das diversidades regionais. Desta maneira levamos ao limite a idéia do darwinismo cultural, onde as culturas regionais mais frágeis e os modelos de desenvolvimentos locais são canibalizados pelos ditames dos detentores das rédeas da elite dirigente estadunidense e seus parceiros europeus. A colaboração inter-regional é muito frutífera e deverá sempre ser semeada, todavia a aculturação sem questionamentos ou sem resistências apenas sinaliza a eternidade da mediocridade e a dependência socioeconômica e política. Neste aspecto, a FEA-USP nos deu um belo exemplo de como jamais uma instituição com a envergadura de uma universidade pública tão importante situada em um país com disparidades sociais tão trágicas como a brasileira. A FEA-USP se propôs a fazer um papel tão pobre e subserviente aos estéreis estrangeirismos e se afirmar no posto de patrocinador público do turismo acadêmico inútil.

Ser estrangeiro no meu próprio país é uma sensação que alguma coisa muito estranha perambula na cabeça entulhada de modismos e interesses medíocres e mesquinhos. Estes são alguns dos ingredientes de como jamais deve ser construído as bases de uma verdadeira nação independente e soberana.