quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Auschwitz à brasileira: Estado apodrecido e corrupção endêmica


No Brasil, a expressão “fundo do poço” não é apenas mera metáfora vazia, mas uma condição existencial da estagnação do Estado. A cada momento e por mais otimista que possa ser a ótica da analise, mais preocupações trazem os dados empíricos da realidade. Os números impressionam: 90% das delegacias paulistanas receberam ou recebem dinheiro proveniente de propinas somente para policiais fazerem “vistas grossas” dentro do esquema milionário de caça-níqueis. Trocando em miúdo, delegados, investigadores e agentes policiais são tão cúmplices do mega-esquema de contravenção quanto os próprios gerentes mafiosos. A fonte é da Agência Estado é resulta da apreensão de documentos de um dos articuladores da máfia dos caça-níqueis. Algo de novo em percentual tão alarmante? A resposta presumida: não! Os números da agenda encontrada com um dos mafiosos, por um setor não-podre da polícia, dão uma dimensão gritante de quão moribundo está o Estado brasileiro.


Não existem parâmetros confiáveis para atestar dados históricos da corrupção dentro da esfera da segurança pública, mas é sabidamente conhecido que a promiscuidade e a corrupção no interior das delegacias de polícia remontariam aos tempos paradisíacos de Adão e Eva (caso existisse algum agente policial para enquadrar a serpente que corrompeu o Paraíso).


A questão que se debate não é o simples fato de ter ou não corrupção dentro da polícia, mesmo porque é uma questão já superada. Infelizmente hoje, quem pode adentrar a uma delegacia de polícia e esperar sinceramente que seu caso seja atendido com êxito? Fazer boletim de ocorrência de algum infortúnio da vida não é mais uma obrigação para fazer valer seus direitos, apenas um mero casuísmo caso haja paciência ou necessidade formal de um simples registro burocrático. Mas diante de todo o fosso da segurança pública, o fundamental é identificar o tamanho do lastro com que a corrupção contaminou os seus setores.


Não adiantam passeadas angelicais de pedidos de Paz ou atividades circenses que beiram ao desespero. A questão é muito mais profunda. Não adianta ter a varinha de condão e invocar num passe de mágica as forças do exército como a panacéia para a segurança pública. A questão se configura quando se percebe o tamanho da corrupção e diluição institucional dentro das polícias.


Corrupta, atabalhoada, descentralizada, ineficiente, pessimamente equipada, policiais com salários irrisórios... A lista do sucateamento da segurança pública não pára por aqui. A violência nutre-se de forma endógena de mais violência, um moto-contínuo sem piedade numa verdadeira espiral de destruição da sociedade e dos ornamentos institucionais. Diante deste calabouço, o Estado brasileiro não é apenas ineficiente e corrupto, é autofágico.

A autofagia que destrói os alicerces básicos da constituição orgânica minimamente civilizada. As profundas chagas derivadas da secular disparidade social criaram bolsões de miséria sem lei ou qualquer futuro alentador. A polícia e sua decadência como poder público é apenas mais um reflexo da diluição do Estado. Aliado à decomposição da educação pública e do sistema sanitário e de saúde, os serviços básicos da teia social se fragmentaram. Tal reflexo atinge diretamente o estágio de esfacelamento e morbidade que se ergue exponencialmente, ano após ano, e sem nenhuma perspectiva de mudança a qualquer tipo de prazo. Possivelmente o exemplo mais emblemático do esfacelamento do Estado repousa angustiadamente no garoto maltrapilho vendedor de balas (quando não passa de uma mera forma desesperada de pedir esmola) nos faróis dos grandes centros urbanos. A sociedade se tornou em um emaranhado de seres ziguezagueantes forjado com uma índole de granito insensível, pustulento e grotesco. É o preço caríssimo da diluição da esfera pública.

Nosso desenvolvimento capitalista é bastardamente senil. Um monstro tão atípico que ora tem números econométricos de uma Suécia, ora é imerso em um misto apodrecido da Faixa de Gaza e Somália. A corrupção não é privilégio de nenhuma sociedade. No caso brasileiro, a corrupção é enraizada, endêmica e faz parte do útero de uma economia subterrânea.


As mazelas são inúmeras, conhecidas e alarmantes. Policiais que ganham salários ridículos, uma estrutura podre que é um verdadeiro convite ao crime e que parte para a propina como engorda de seus soldos. O sistema de transporte privatizado, que somente sobrevive alicerçado sobre uma máfia que arregimenta um expressivo número de trabalhadores na mais total informalidade. Cassinos sob a fachada de bingos lavam e secam dinheiro sujo e patrocinam o narcotráfico. Agentes do Departamento de Trânsito (DETRAN) em conluio com auto-escolas que condicionam a aprovação dos alunos nos exames à liberação de propina de R$ 300,00 por aluno (em valores atuais). Sistema judiciário míope e cínico que privilegia quem pode corromper mais o juiz ou pagar um advogado não tão ruim. A política do superfaturamento de orçamento público e o desvio de verbas em todas as esferas do governo como a única finalidade básica do "homem público": o famigerado enriquecimento ilícito e a política se metamorfoseando em um mero espetáculo eleitoreiro. No submundo da economia do ilícito, tráfico de drogas, armas, mulheres e toda sorte de falcatruas sempre contanto com a participação de agentes do Estado em suas operações e organizações cada vez mais coesas e produtivas. A lista novamente é grande e o espaço para a escrita é ínfimo.


O grau de destruição do Estado não espanta apenas pela dimensão, mas, sobretudo pela falta de visão política de reconstrução do Estado. O espectro político da direita à esquerda não trouxe novidade alguma em suas práticas. Sejam tucanos neoliberais ou petistas do lulismo neoliberal, a agonia pelo imediatismo do voto e o sangue do poder enegreceram suas práticas políticas. Após o regime militar, sucessivos governos ditos "democráticos" não trouxeram grande mudança ao atual quadro social brasileiro. Algum número com manipulação de resultado pode até aliviar a miséria, mas não a elimina. Vinte e cinco anos de severa timidez econômica (média anual quase nunca passando de 4% de crescimento do PIB) aliada à diluição assustadora da ordem social produziram uma modernização excludente que primou pela violência, aglutinação conservadora e segregacionista, além de estampar o esgotamento de um modelo social falido.


Não existe progresso com exclusão e tampouco desenvolvimento amparado por grotescos bolsões de miséria. São termos antípodas e não permitem que sejam enjaulados numa mesma conjectura socioeconômica. A diluição da política se constrói no espaço assimétrico do estrangulamento econômico. Não podemos nos contentar com ilhas de progresso fortuito cercadas por famélicos e subempregados aglomerados nas senzalas pós-modernas. Atualmente, cerca de 40 milhões de brasileiros sobrevivem em situação crítica, ou seja, situados na linha de pobreza. Como justificar tamanha violência dos centros urbanos somente pela linha de raciocínio simplista e fascista, de que basta colocar tanque de guerra, porrada, cacete e cadeia que os problemas se resolvem num passe encantado de pura mágica fascista.


A corrupção policial não é a causa da explosão de violência crescente das últimas décadas, mas o sintoma avassalador do modelo falido de visão governamental. A política sucumbiu à ordem e matrizes econômicas. O Estado, quando existe, é apenas para atender alguns desejos da ordem capitalista. Em outras palavras, o Estado quando funciona abdica de sua autonomia política e reduz a sua ação apenas à manutenção da ordem. Essa ordem se traduz na não-perturbação do fluxo do grande capital e, seguindo esta natureza, a ação estatal se limita a não permitir a criação de obstáculos para a sua circulação. Segregar contingente populacional inteiro em guetos significa que essas pessoas não têm mais importância num modelo capitalista cada vez mais autônomo de trabalhadores.


A violência se acirra com amplitude da agonia proveniente da exclusão e miséria. O permanente estado de beligerância do Rio de Janeiro é mais um monstruoso exemplo de que o poder do Estado não mais existe e pouco se faz presente no espaço social. Substituindo macabramente o papel estatal, quadrilhas paramilitares assumem o papel eclodindo em ondas intermitentes de caos e guerrilha urbana. A questão de São Paulo e as suas gangues organizadas dentro de presídios com participação de advogados e agentes públicos, já cometem ondas de violência explícita sem paralelos na história recente do estado e também reforçam as raízes da diluição do poder estatal.


A corrupção da segurança pública é mais um detalhe pertinente na latrina regurgitada do caos a que o descaso e a irresponsabilidade de uma elite perversa, cega e inconseqüente conduziram este país. O caos é a contraparte da sociedade organizada. É dentro da sociedade que pode se organizar a única bastilha que possibilite o resgate de uma ordem de valores possíveis, para que a prática da política se erga contra a ditadura da ordem econômica. Não podemos apenas se contentar em uma caricatura medíocre e assassina de cidadania: “consumo, logo existo”! E preciso recuperar a idéia de sociedade como espaço socializável dos seres humanos e não apenas como muros do condomínio fechado do apartheid brasileiro.


Quanto mais os habitantes de uma sociedade se refugiarem na utopia egocêntrica, na tentativa de ser proteger em vão da adversidade do caos, mais estarão contribuindo para a construção de um mundo segregado, hostil e violentamente mórbido. Uma espécie de “solução final” (Endlösung) tupiniquim em alusão à nefasta e megalomaníaca política do Estado nazista. Com miopia avassaladora, exaltação extrema do individualismo e a segregação social - assim estão sendo traçados os caminhos para a trágica consolidação do nosso Auschwitz à brasileira.
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Referência: Agência Estado. Das 8 seccionais de São Paulo, 7 sob suspeita. São Paulo, 17/06/2007. Disponível em
http://noticias.uol.com.br/ultnot/2007/06/17/ult4469u5486.jhtm .

domingo, 18 de novembro de 2007

Trabalho infantil ontem e hoje: um brevíssimo panorama da barbárie à brasileira (2a. Parte)


Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), estima-se que existem cerca de 350 milhões de crianças entre cinco e dezessete anos economicamente ativa em todo o planeta, sendo que 60% com menos de quinze anos e 70% estão trabalhando no setor agrícola. Se considerar os que trabalham em tempo parcial, este número situa-se em 250 milhões (61% na Ásia, 32% da África e o restante, e o restante espalhados pela América Latina). Desse número, 73% estão empregados nas piores formas de trabalho infantil, ou seja, 170 milhões se ocupando em trabalho perigoso, 8 milhões de crianças são alocadas em formas degradantes e perversas: o trabalho forçado ou escravo (5,7 milhões), conflito armado (0,3 milhão), prostituição e pornografia (1,8 milhões), tráfico de drogas (1,2 milhões) e outras atividades ilícitas não-catalogadas (0,6 milhões) (Kassouf, 2004).

No Brasil, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001 e reflete os anos 1990, catalogou aproximadamente 3,5 milhões de crianças de cinco a quinze anos que estão trabalhando, o que pode representar cerca de 10% do total das crianças e jovens nessa faixa etária (considerando os que estão procurando emprego). Entre os que possuem dezesseis e dezessete anos, são quase 2,4 milhões de trabalhadores ou 35% do total de jovens nessa faixa etária (Kassouf, 2004a). Portanto, no Brasil, o total de crianças e jovens entre cinco a dezessete anos que tem alguma ocupação é da ordem de 5,5 milhões, ou seja, 12,71% do total de crianças e jovens brasileiros estimados pelo PNAD em 2001.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase meio milhão de meninas brasileiras estão trabalhando em casas de terceiros, executando todos os tipos de serviços domésticos, com jornadas excessivas e com pouca ou nenhuma remuneração financeira e tampouco amparo das leis trabalhistas. São 494.002 trabalhadores domésticos entre cinco e dezessete anos, sendo que desse total, 222.865 estão abaixo dos dezesseis anos.

A incidência de trabalho infantil é maior nas regiões do Nordeste e Sul, com 13% e 10%, respectivamente, das crianças trabalhando. Se for focalizada a distribuição territorial dos trabalhadores-mirins, e ainda utilizando os dados do PNAD de 2001, em termos percentuais (relativos) os principais estados com o maior número de exploração do trabalho de crianças e jovens entre cinco e dezessete anos, em ordem decrescente, Maranhão (22,23%), Tocantins (18, 32%), Piauí (17,41%), Ceará (16,92%), Alagoas (17,07%), Bahia (16,36%) e Pernambuco (16,13%). Todavia, quando se observa os números absolutos de trabalhadores-mirins, o quadro de altera colocando São Paulo (747.885) em destaque, seguindo nas primeiras posições, Bahia (617.009), Minas Gerais (578.728), Maranhão (417.291), Ceará (368.934), Rio Grande do Sul (366.136) e Pernambuco (361.005). Vale enfatizar o caso de São Paulo que possui o status de maior estado do eixo econômico brasileiro é o campeão nacional de exploração do trabalho de crianças e jovens de cinco a dezessete anos em número absoluto e também no número absoluto de trabalhadoras domésticas na mesma faixa etária (quase 70 mil). Resultados contrários ao que muitos paulistas e demais brasileiros tendem a acreditar no mítico capitalismo do progresso material sem espoliação humana!

É importante ressaltar ainda as dimensões sociais das ocupações deste tipo de exploração de trabalho para entender as disparidades existentes nos números apresentados e as disparidades econômicas. O trabalho infanto-juvenil existe com maior freqüência nas regiões agrícolas e em atividades também agrícolas e em famílias que trabalham por conta própria, seja na agricultura, seja em atividades urbanas (destaca-se o pequeno comércio e os serviços). No Brasil, 53% das crianças entre cinco a quinze anos trabalham nas regiões agrícolas e estes percentuais se modificam na medida em que vão atingindo sua maturidade: 30% de ocupação no setor agrícola dos jovens entre dezesseis e dezessete anos e 17% entre dezoito a sessenta anos (Kassouf, 2004b). Segundo Schwartzman (2001), "tipicamente, o trabalho infantil começa no Brasil como uma atividade junto à família, no trabalho agrícola, que vai envolvendo um número crescente de crianças à medida que elas amadurecem". Apesar de a região Sul estar entre as regiões mais desenvolvidas do país, existe uma importante base de agricultura familiar nessa região, o que pode justificar as similaridades dos números da incidência do trabalho infantil das regiões Sul e Nordeste, ou seja, a região com maior gravidade de problemas econômicos do país.

Dessa maneira, não existem zonas de exclusão desse tipo de exploração do trabalho, todas as regiões contribuem sem ressalvas para a exploração do trabalho infantil. Em termos absolutos, o Nordeste possui o maior número de crianças trabalhando, cerca de 1,5 milhão, seguido pela região Sudeste, com 710 mil trabalhadores-mirins (Kassouf, 2004c). Em termos regionais, ele prepondera tanto nos estados mais pobres do país, como a Bahia e o Ceará, como nos estados do Sul, como Santa Catarina e Rio Grande, que têm uma tradição de agricultura familiar mais consolidada. Nas idades mais inferiores, prepondera o trabalho sem remuneração que, quando ocorre, aumenta com a idade: até os quatorze anos, mais da metade das crianças trabalha sem remuneração; aos dezessete, 68% já recebem pelo trabalho que desempenham. Existe uma tendência que resulta na medida em que a população brasileira deixa o campo, o trabalho infantil também é reduzido.

A exploração do trabalho infantil é reforçada quanto aos percentuais de remuneração (isto é, quando existem) auferida pelos trabalhadores-mirins: em média, apenas 35% das crianças recebem salário por seu trabalho, sendo que nas áreas urbanas este percentual é em torno de 58%, contra 13%, em média, nas áreas rurais. Quando recebe alguma remuneração, o trabalho das crianças entre cinco a quinze anos, no ramo agrícola corresponde entre 40 a 100% da renda familiar em 16,5% dos casos pesquisados pela PNAD (2001), no setor da construção civil, o percentual é de 12%, setor de serviços corresponde a 11,2% e comércio e social, respectivamente, 11,2% e 2,9%. Dessa maneira, a participação da remuneração proveniente do trabalho infantil é ainda significativa para a composição da renda de suas famílias. É possível perceber através dos dados, o trabalho infantil se engendra visceralmente na precarização econômica de suas famílias contribuindo para acentuação e perpetuação de sua lamentável e gritante exploração.

Existe ainda um mito na sociedade brasileira que não condena a exploração do trabalho infantil com a veemência e a atenção que o tema exige. Muitas vezes, é até visto com "bons olhos" o trabalho das crianças com as mais inverossímeis justificativas. Para os padrões brasileiros, uma criança fica na escola em torno de 8 anos no ensino fundamental e mais 3 anos no ensino médio, perfazendo 11 anos de ensino básico. Nas áreas rurais, o índice de analfabetismo até os quinze anos chega a 7,87% e o número médio de estudos é 4,29 (ou seja, o máximo atinge o final do fundamental I, a quarta série). No comércio o índice de analfabetismo é de 1,54% e, em média, com 6,24 anos de estudos e no setor da construção civil o índice de analfabetismo e anos de estudo são, respectivamente, 1,71% e 5,47. Ressaltam-se as disparidades regionais em termos de número de anos de estudo de crianças abaixo de quinze anos, no Sudeste é em torno de 6,70 contra 5,19 no Nordeste. Assim, em média, no Sudeste as crianças estudam cerca de 60% da carga básica de estudos enquanto que o percentual é de 47,2% no Nordeste (menos da metade mínimo necessário!).

Os números do trabalho infantil demonstram que os parcos esforços governamentais para eliminar suas práticas nocivas ao desenvolvimento da criança tem sido irrisórios e somente atenuam focos pontuais e por tempo delimitado. A tragédia econômica, social e psicológica para uma criança em estado de exploração trás naturalmente danos irreversíveis para sua vida. As conseqüências são trágicas e conhecidas: com menor escolaridade, menor será a sua renda futura. Sem nenhum grau de instrução ou com baixa escolaridade, quanto mais cedo a pessoa se tornar economicamente ativa, menor será a sua renda ao final de 30 anos de trabalho (sem considerar os impactos deletérios para sua saúde).

Entre outros fatores de natureza socioeconômica de desenvolvimento regional, libertar essas crianças das zonas de exploração do trabalho depende enfaticamente das melhorias gradativas das condições econômicas de suas famílias, além da inadiável fixação da criança em período integral na escola com subsídios mínimos de assistência econômico e social. A vital ampliação das verbas públicas voltadas para a educação e segurança social será plenamente justificada pela efetiva e acelerada política de erradicação das formas de exploração de crianças e jovens e a conseqüente mudança do padrão de vida de suas famílias.

A erradicação do trabalho infantil não deve ser apenas tema de análises conjunturais e estatísticas por parte do governo brasileiro. É pertinente uma mudança cultural por parte de todos os estamentos sociais se posicionando contrário a todas as formas manifestadas de exploração de crianças em nome de alguma atividade econômica. A sociedade brasileira deve se indignar com veemência, cobrar das autoridades responsáveis efetivas ações e não compactuar com os mitos degenerativos da vida de uma criança explorada e, em muitos casos, confinada pelo seu explorador em uma situação de total desprezo pela vida humana. É fundamental ressaltar que sem uma atuante política governamental que diminua sensivelmente as trágicas e seculares disparidades sociais brasileiras a tendência será certamente a perpetuação da barbárie sob a forma de exploração do trabalho infanto-juvenil.

Referências bibliográficas:


KASSOUF, Ana Lúcia (coord.). O Brasil e o trabalho infantil no início do século 21. Brasília: OIT, 2004a.

KASSOUF, Ana Lúcia (coord.). Trabalho infantil no ramo agrícola brasileiro. Brasília: OIT, 2004b.

KASSOUF, Ana Lúcia (coord.). Perfil do trabalho infantil no Brasil, por regiões e ramos de atividade. Brasília: OIT, 2004c.

SCHWATZMAN, Simon. Trabalho infantil no Brasil. Brasília: OIT, 2001.

sábado, 17 de novembro de 2007

Trabalho infantil, ontem e hoje: o capitalismo sem limites (Primeira Parte)

A base de sustentação do sistema capitalista é a exploração do trabalho. Desde seu advento, nos primórdios da Revolução Industrial inglesa em fins do século XVIII, o trabalho de camponeses expulsos do campo para as cidades era a força motriz do sistema fabril. Nada era recusado ou era batizado por algum princípio ético de dignidade humana: homens, mulheres e crianças eram as forças constituintes do modo de produção. O trabalho infantil sempre foi visto com olhares de cinismo e discurso barato. Em todas as grandes potências que hoje se rotulam de "Primeiro Mundo", têm em comum na sua base constituinte de produção material o trabalho infantil em regime de escravidão ou semi-escravidão (ou seja, ganham tão somente para se alimentarem).


Não nos iludimos com os princípios da ética capitalista. A moral desse modo de produção não é a primazia da ética, mas a busca incessante do lucro a qualquer custo. Não surpreende que a China, com seu regime comunista engendra um motor avassalador de um capitalismo que mescla primitivismo técnico e alta tecnologia, fazendo uso maciço do trabalho infantil. A base do capitalismo chinês nas disputas mercantis pelos mercados globais está no uso intensivo de mão-de-obra barata que beira a escravidão ou servidão por dívidas.

Nenhuma potência do G-8 (grupo dos sete países mais ricos do planeta mais a Rússia) tem autoridade moral para questionar a exploração da mão-de-obra de crianças, sejam elas chinesas, brasileiras ou paquistanesas. Em cada momento do seu tempo, as bases fabris desses países usaram largamente o trabalho de suas crianças para a acumulação e ampliação de suas bases capitalistas. O dinheiro pode apagar da lembrança de alguns homens tais degradantes episódios, porém a história sempre tratará de resgatá-los com hombridade.

O mero “denuncismo” pouco adianta num mundo onde a usura incontrolável por mercados e lucros são a tônica do processo. Por exemplo, alguns setores da mídia denunciam o uso do trabalho infantil chinês na confecção de mercadorias para serem vendidos como souvenires para as Olimpíadas de Pequim no próximo ano. A denúncia não é um fato atípico como muitos pensam, porém é simplesmente a regra. Tendo em vista a cortina-de-ferro promovido pelo esquizofrênico Estado chinês, os números da exploração do trabalho infantil podem ser incalculáveis, principalmente nas áreas mais afastadas dos grandes pólos industriais de tecnologia, onde as técnicas são mais rudimentares de produção, como são os casos da confecção de brindes, vestuários, calçados, alguns brinquedos entre outras mercadorias de baixo valor agregado.


No caso do caso do capitalismo tardio brasileiro, a situação não difere dos demais países da vanguarda capitalista. O IBGE estimou em 2003, cerca de 5 milhões de crianças e jovens na idade entre 5 a 17 anos que possuem alguma atividade remunerada, em detrimento da lei que proíbe trabalho para menores de 16 anos. O universo de trabalhador-mirins pode ser muito maior que os números possam registrar uma vez que não é possível coletar dados satisfatoriamente das inúmeras fazendas e pequenas oficinas de trabalho escravo escondidos e espalhados pelas diversas regiões do país.


Não é possível combater sistematicamente o trabalho infantil apenas com bom-mocismo e uma cesta de políticas pífias como as tais “bolsas-auxílio-alguma-coisa” (ou melhor, bolsa de perpetuação da miséria!) e fiscalização frouxa (aliás, quando existe alguma fiscalização com um número de fiscais irrisórios para o quadro nacional!). No caso do Brasil, os números governamentais podem ter algum declive, mas jamais teremos uma erradicação completa do trabalho infantil. Na prática, em nenhum lugar do mundo onde existe superexploração do trabalho infantil terá mudança substancial sem abalar estruturalmente o sistema capitalista que o alimenta e reproduz repetitivamente de forma quase perpétuo.


A ótica do sistema capitalista de exploração do trabalho como vias pavimentadas para o lucro, jamais libertará de bom-agrado estas milhares de crianças e jovens indefesas, sem destino e renda. Associada a uma perversa distribuição de renda que destrói famílias inteiras e se vendo na obrigação compulsória de sustentá-las de forma quixotesca. Este contingente de trabalhador-mirins se submetem à mercado para vender a única coisa quer restam entre seus dedos: sua força de trabalho e selar seu destino nas inúmeras pocilgas que não-raro, está associada à uma grande empresa "eticamente" cumpridora de seus obrigações fiscais perante o Estado. Um exemplo bastante conhecido é a arrogante loja da elite paulistana, a Daslu, que comprava contrabando de mercadorias pirateadas a baixo custo com mão-de-obra de exploração chinesa e vendia com preços exorbitantes como se fossem bugigangas européias, sem passar pelo fisco e não pagar nenhum imposto. Será mera inocência de algum desavisado gerente de importação da aburguesada loja? Na dinâmica capitalista, a exploração é a norma e não a exceção.


Do ponto de vista histórico, não existiu construção capitalista nas sociedades mais desenvolvidas do ponto de vista de acumulação de bens, sem o uso maciço de mão-de-obra com precárias condições de trabalho (semi-escravidão), incluindo o largo uso do trabalho de mulheres e crianças em sua máquina de moer gente e produzir dinheiro. Aliás, é justamente desta exploração que geraram dividendos para a acumulação primitiva possibilitar novos saltos rumo à novos estágios de produção.

Também não existem produção e distribuição capitalista sem o papel do "atravessador", ou seja, o intermediário entre a produção e o consumo final. Atrás de uma criança escravizada pelo trabalho há sempre uma grande loja, empresa ou indústria de comportamento "ético e legal" que vampirizam o trabalho dessas crianças.

O trabalho infantil das crianças brasileiras e chinesas é um bom exemplo de uma verdadeira vergonha da humanidade, entre tantas outras misérias em nome da disputa incomensurável pelos lucros, que produz uma acumulação de bens e capital com o suor, lágrimas e dedos estourados desse enorme continente populacional de escravos-mirins.

A volúpia e a desfaçatez dos homens e mulheres que detém as rédeas do monstruoso modo de superexploração capitalista, beira ao completo canibalismo primitivo em nome da panspermia do dinheiro a qualquer custo.